Memórias do cárcere
"Sem demora, uma voz pastosa, hesitante, anunciou a teoria das duas hipóteses. Risos contagiosos interromperam com frequência a exposição. Consegui entendê-la por alto. Otimista panglossiano, Apporelly sustentava que tudo ia muito bem. Fundava-se a demonstração no exame de um fato de que surgiam duas alternativas; excluía-se uma, desdobrava-se a segunda em outras duas; uma se eliminava, a outra se bipartia, e assim por diante, numa cadeia comprida. Ali onde vivíamos, Apporelly afirmava, utilizando o seu método, que não havia motivo para receio. Que nos poderia acontecer? Seríamos postos em liberdade ou continuaríamos presos. Se nos soltassem, bem: era o que desejávamos. Se ficássemos na prisão, deixar-nos-iam com processo ou sem processo. Se não nos processassem, bem: à falta de provas, cedo ou tarde nos mandariam embora. Se nos processassem, seríamos julgados, absolvidos ou condenados. Se nos absolvessem, bem: nada melhor esperávamos. Se nos condenassem, dar-nos-iam pena leve ou pena grande. Se se contentassem com a pena leve, muito bem: descansaríamos algum tempo sustentados pelo governo, depois iríamos para a rua. Se nos arrumassem pena dura, seríamos anistiados, ou não seríamos. Se fôssemos anistiados, excelente: era como se não houvesse condenação. Se não nos anistiassem, cumpriríamos a sentença ou morreríamos. Se cumpríssemos a sentença, magnífico: voltaríamos para casa. Se morrêssemos, iríamos para o céu ou para o inferno. Se fôssemos para o céu, ótimo: era a suprema aspiração de cada um. E se fôssemos para o inferno? A cadei9a findava aí. Realmente ignorávamos o que nos sucederia se fôssemos para o inferno. mas ainda assim não convinha alarmar-nos, pois essa desgraça poderia chegar a qualquer pessoa, na Casa de Detenção ou fora dela."
2 Comments:
Racionalização otimista de fazer o tio Voltaire ficar sem graça.
By Unknown, at quinta-feira, agosto 27, 2009
Muito bom!
By Érica L., at sexta-feira, setembro 04, 2009
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