[sem título]
Os últimos dias, não sei por que, foram curiosos. Quer dizer, na verdade, não teve nada demais. Continuei fazendo as mesmas coisas de sempre, vendo as mesmas pessoas de todo dia, tomando chopp às segundas-feiras com o pensamento em alguma coceira debaixo do pé. Ou na camisa amassada da pessoa em frente. Coisas assim, sem graça. Paguei a multa da locadora. Fechei todas as portas dos armários. Até arrumei a cama.
Minha irmã ligou no sábado, às três da manhã, perguntou se era verdade que eu ia me mudar. Disse que sim. Ela perguntou por que – mais por uma função fática do que por querer realmente saber, porque ela já sabia, obviamente. As notícias, por menos interessantes que sejam, correm rápido na nossa família. Acho que em todas, aliás.
Mariana disse que viria no domingo, mas não apareceu. Encontrei ela foi na véspera, meio que por acaso, numa dessas noites em que a gente roda pela cidade sem ter o que fazer, seguindo dicas e sugestões vagas de alguns amigos que conheceram um lugar bacana, um novo point, uma esquina movimentada interessante. Ela estava com uns amigos esquisitos dela, mas veio até mim, sempre rebolativa e sorridente, como se nunca tivesse prometido fazer uma despedida particular no meu apartamento – ou melhor, como se não tivesse descumprido a promessa.
- E aí, Bê. Animado com as mudanças?
Não sabia a que mudanças ela se referia.
- Seu cabelo, por exemplo. Tá mais curto que da última vez que eu te vi.
- Vocês mulheres reparam em muita coisa.
Não que isso fosse ruim.
Largamos nossos grupos um pouco depois e seguimos a sós pelas ruas mal iluminadas, outras iluminadas demais. Uma garagem já velha conhecida, uma maçaneta discreta, um cômodo silencioso. Mariana estava feliz demais para uma despedida. Se fosse uma despedida tradicional, eu desconfiaria.
O resto do pessoal se manifestou aos poucos, com clichês e sem muita emoção. Uns disseram que a cidade era uma merda, que eu devia realmente sair dali, que se pudessem fariam a mesma coisa. “É só pegar um ônibus”, disse a eles. “Ou um avião. O que o seu limite de crédito permitir”. Uns dois prometeram me visitar. Os outros nem comentaram nada da viagem. Chegaram a mandar um “vamos marcar alguma coisa semana que vem”. Distraídos eles.
Prefiro assim.
Ganhei um presente da minha chefe. Gostava bastante dela, uma coroa bacana. Podia ser minha tia, sei lá. Minha sogra. Minha vizinha. Podia ser minha chefe... seria ótimo. Ela me deu um objeto metálico, pareciam duas colheres ligadas, com furinhos na base de uma delas, algo assim. Era um espremedor de limão. Fiquei imaginando quanto esforço ela devia ter feito para pensar em um presente assim. Fiquei pensando se limões são realmente indispensáveis na vida de um solteiro de 28 anos, recém saído de sua cidade natal. Gostei, de qualquer forma. Achei original.
No último dia ouvi vários CDs, todos juntos, um depois do outro, botava um, tirava, colocava outro, trocava para o anterior, pulava as faixas, já ia substituindo por um terceiro... E por aí vai.
Gostei dos últimos dias. Nenhum parente me incomodou, minha mãe nem chorou. Ninguém pediu lembrancinhas ou coisa parecida. Sabiam que eu não voltaria mesmo. Talvez estivessem de saco cheio de mim, torcendo para eu ir logo. Todos me desejaram boa sorte. Alguns me perguntaram se eu já tinha emprego por lá. Outros me informaram que as mulheres daquela região eram extremamente liberais. Não sei se gostei da informação. O porteiro mandou um “é isso aí, doutor”, mas não entendi o que as palavras significavam. Não tenho nenhum interesse específico pelo porteiro, então não perguntei. Minha mãe veio, cozinhou para mim, pegou na minha mão. Mariana ligou, desejou boa viagem. A televisão anunciou buracos no bairro tal, tempo nublado no dia seguinte, um novo aumento no preço dos ônibus. O rádio engasgou. As lâmpadas continuaram paradas, sem saudações.
Devia ter tirado alguma foto daquele apartamento; gostava dele, mas já não me lembro mais nem da cor dos azulejos da cozinha. Esqueço tudo muito fácil. Todo mundo me diz que isso é bom. Os professores costumavam se lamentar.
Não fiz questão que todos soubessem que eu não esperava que tudo mudasse. Não tinha nada contra minha vidinha comum. Estava tudo bem. Só tive uma idéia, ela me perseguiu, e eu decidi, um dia, finalmente concordar com ela. Sabia que meus problemas e minhas alegrias viriam junto comigo, não tinha ilusões de grandes acontecimentos cinematográficos daqueles que transformam a existência de alguém. Além do que, sempre quis dizer adeus para alguém. Acabei não dizendo. Muito artificial. Mas foi como se tivesse dito. Gosto de viagens. De coisas novas. Conheço essa cidade, há muito tempo ela me agrada, me atrai. Acho que vamos ser bons companheiros. Depois... tudo se ajeita de novo. A gente acaba sempre se acostumando, estabilizando tudo. Não dá para ser tudo diferente todo dia. Depois a novidade perde a graça.
Deixei a chave com o proprietário. Pedi um táxi, fui sozinho mesmo. Da rodoviária liguei para minha mãe, para tentar tranqüilizar ela. Mães sofrem o tempo todo.
Falei pouco. Comi pouco também. Esperei muito. No ônibus, fiquei vendo a monotonia das coisas que passam pela janela. Me retorcendo na cadeira. Pensando em fatos passados, pessoas, objetos, lugares, sensações, diálogos e muitas outras coisas, tudo misturado.
Minha irmã ligou no sábado, às três da manhã, perguntou se era verdade que eu ia me mudar. Disse que sim. Ela perguntou por que – mais por uma função fática do que por querer realmente saber, porque ela já sabia, obviamente. As notícias, por menos interessantes que sejam, correm rápido na nossa família. Acho que em todas, aliás.
Mariana disse que viria no domingo, mas não apareceu. Encontrei ela foi na véspera, meio que por acaso, numa dessas noites em que a gente roda pela cidade sem ter o que fazer, seguindo dicas e sugestões vagas de alguns amigos que conheceram um lugar bacana, um novo point, uma esquina movimentada interessante. Ela estava com uns amigos esquisitos dela, mas veio até mim, sempre rebolativa e sorridente, como se nunca tivesse prometido fazer uma despedida particular no meu apartamento – ou melhor, como se não tivesse descumprido a promessa.
- E aí, Bê. Animado com as mudanças?
Não sabia a que mudanças ela se referia.
- Seu cabelo, por exemplo. Tá mais curto que da última vez que eu te vi.
- Vocês mulheres reparam em muita coisa.
Não que isso fosse ruim.
Largamos nossos grupos um pouco depois e seguimos a sós pelas ruas mal iluminadas, outras iluminadas demais. Uma garagem já velha conhecida, uma maçaneta discreta, um cômodo silencioso. Mariana estava feliz demais para uma despedida. Se fosse uma despedida tradicional, eu desconfiaria.
O resto do pessoal se manifestou aos poucos, com clichês e sem muita emoção. Uns disseram que a cidade era uma merda, que eu devia realmente sair dali, que se pudessem fariam a mesma coisa. “É só pegar um ônibus”, disse a eles. “Ou um avião. O que o seu limite de crédito permitir”. Uns dois prometeram me visitar. Os outros nem comentaram nada da viagem. Chegaram a mandar um “vamos marcar alguma coisa semana que vem”. Distraídos eles.
Prefiro assim.
Ganhei um presente da minha chefe. Gostava bastante dela, uma coroa bacana. Podia ser minha tia, sei lá. Minha sogra. Minha vizinha. Podia ser minha chefe... seria ótimo. Ela me deu um objeto metálico, pareciam duas colheres ligadas, com furinhos na base de uma delas, algo assim. Era um espremedor de limão. Fiquei imaginando quanto esforço ela devia ter feito para pensar em um presente assim. Fiquei pensando se limões são realmente indispensáveis na vida de um solteiro de 28 anos, recém saído de sua cidade natal. Gostei, de qualquer forma. Achei original.
No último dia ouvi vários CDs, todos juntos, um depois do outro, botava um, tirava, colocava outro, trocava para o anterior, pulava as faixas, já ia substituindo por um terceiro... E por aí vai.
Gostei dos últimos dias. Nenhum parente me incomodou, minha mãe nem chorou. Ninguém pediu lembrancinhas ou coisa parecida. Sabiam que eu não voltaria mesmo. Talvez estivessem de saco cheio de mim, torcendo para eu ir logo. Todos me desejaram boa sorte. Alguns me perguntaram se eu já tinha emprego por lá. Outros me informaram que as mulheres daquela região eram extremamente liberais. Não sei se gostei da informação. O porteiro mandou um “é isso aí, doutor”, mas não entendi o que as palavras significavam. Não tenho nenhum interesse específico pelo porteiro, então não perguntei. Minha mãe veio, cozinhou para mim, pegou na minha mão. Mariana ligou, desejou boa viagem. A televisão anunciou buracos no bairro tal, tempo nublado no dia seguinte, um novo aumento no preço dos ônibus. O rádio engasgou. As lâmpadas continuaram paradas, sem saudações.
Devia ter tirado alguma foto daquele apartamento; gostava dele, mas já não me lembro mais nem da cor dos azulejos da cozinha. Esqueço tudo muito fácil. Todo mundo me diz que isso é bom. Os professores costumavam se lamentar.
Não fiz questão que todos soubessem que eu não esperava que tudo mudasse. Não tinha nada contra minha vidinha comum. Estava tudo bem. Só tive uma idéia, ela me perseguiu, e eu decidi, um dia, finalmente concordar com ela. Sabia que meus problemas e minhas alegrias viriam junto comigo, não tinha ilusões de grandes acontecimentos cinematográficos daqueles que transformam a existência de alguém. Além do que, sempre quis dizer adeus para alguém. Acabei não dizendo. Muito artificial. Mas foi como se tivesse dito. Gosto de viagens. De coisas novas. Conheço essa cidade, há muito tempo ela me agrada, me atrai. Acho que vamos ser bons companheiros. Depois... tudo se ajeita de novo. A gente acaba sempre se acostumando, estabilizando tudo. Não dá para ser tudo diferente todo dia. Depois a novidade perde a graça.
Deixei a chave com o proprietário. Pedi um táxi, fui sozinho mesmo. Da rodoviária liguei para minha mãe, para tentar tranqüilizar ela. Mães sofrem o tempo todo.
Falei pouco. Comi pouco também. Esperei muito. No ônibus, fiquei vendo a monotonia das coisas que passam pela janela. Me retorcendo na cadeira. Pensando em fatos passados, pessoas, objetos, lugares, sensações, diálogos e muitas outras coisas, tudo misturado.