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3.10.05

Eric & Carolina

Os bares não variam nunca, até as variações são iguais. Às vezes se você toma uma cerveja a mais, uma a menos, eles podem soar mais ou menos interessantes, mas no geral... todo mundo sabe o que os reveste. Ele tinha dito, não estava a fim, estava com sono, cansado, disposição nenhuma. Aí vem aquele chiado, aquela repetição de “velho”, “chato”, “vai fazer o quê em casa?”. Argumentos cotidianos, nada muito elaborado, só o tom de desprezo pela sua vontade momentânea. “Foi mal pessoal, vou pra casa...”. Levantou umas três vezes, veio de novo aquela algazarra, as pessoas dos lados mandando sentar de novo, encher o copo, entrar na conversa, dar a opinião sobre alguma coisa que ele não identificava no meio do barulho. “O quê?”, tentou uma, duas vezes, depois desistiu, ficou reparando nos quadros da parede em frente. Alguém ria dele, chamava de surdo. Ele riu, falou alguma bobagem pra satisfazer. Uns acharam engraçado, deram uns tapinhas nas costas, ele ficou sem-graça, uma bobagem daquela e as pessoas rindo. Efeitos da cerveja, só podia ser. Depois, depois de um tempo, fica mais fácil dar tchau e ir embora. Uma menina simpática ali do lado, nunca tinha visto, mas pôs-se a tagarelar com ela alguma futilidade. A menina era divertida. E nem parecia que estava bebendo. “O que é isso?”, perguntou, era tônica. Provou, mas já sabia o gosto: argh! A menina fingiu que não gostava também, mas disse que era bom pro câncer de esôfago. Ele fez que achou engraçado. Pouco importava, a menina era agradável. Uns amigos do outro lado lançavam uns olhares maliciosos, ele se virou pra fingir que não via. Droga, todo mundo sabia ali que ele estava brigado com a Carolina, pra quê aquelas insinuações? Não podia falar com nenhuma mulher só pra papear? A menina, nesse intervalo, já conversava com outras pessoas, tentou inclui-lo, ele não ouvia. Devia estar surdo mesmo. E velho. E chato. Pelo menos nem estava deprimido, e todo mundo surpreso, tentando consolar... “Ah não, eu tô legal, só não quero sair hoje...”. Acreditaram ou não, forçaram a barra, lá estava ele no bar. Um sonzinho confuso saía de alguma parte do teto, tudo ali meio confuso aliás, e o cardápio também... quis comer nada. Aproveitou levantou mais uma vez, ninguém deu atenção, ele acenou pra algumas pessoas, todo mundo riu de volta, ah que felicidade. Foi embora de ônibus, com a cabeça caída pro lado, pensando na conta da lavanderia que tinha esquecido de pagar.

***

Uma vontade incontrolável de ouvir Eric Clapton, ia pensando enquanto subia a escada com a chave na mão. Qual disco? Um ainda devia estar na casa da Carolina... Ah, a Carolina. Ela era fabulosa, pensava, sempre que brigavam. Dava saudade. Ele tinha errado, disso não tinha dúvida, mas droga, todo mundo erra. E todo mundo erra feio pelo menos uma vez. E isso queria dizer o quê? Que ele não gostava dela? Que ele não a respeitava? Não, queria dizer... não sabia. Só sabia que não importava. Tudo bem, importava, a menina se chateou, ele viu a besteira que tinha feito, mas já estava na hora de esquecer. Carolina era fabulosa, mas às vezes teimosa demais. E ele era bonzinho demais. No início achava que ela se aproveitava disso, mas depois foi equilibrando. Todo mundo erra feio, ele pensava, procurando o CD do Eric Clapton, não adiantava ficar insistindo em tentar se convencer de que ele era um cara mau. Não era, pronto, e dane-se o que as pessoas iam pensar... “Você vai perdoar isso, Carolina?”, “Carolina, nunca esperava isso dele...”, “Ah, você esquece ele rapidinho, rapidinho, tem um amigo meu que...”. É, Carolina, vai ouvir os outros,vai. Eu vou ouvir Eric Clapton, a noite toda, e se eu dormir tudo bem, se eu não dormir fico fazendo backing vocal pra ele. O Eric merece.

***

Já estava na segunda repetição do CD, alguém ligou no celular, preocupado com ele. Ele explicou, tinha saído algumas horas atrás, se despediu e tudo, não tinham visto? Estava tudo bem, tudo bem. Não, nenhuma notícia da Carolina. Pode deixar, eu não estou mal. Não se sintam mal por mim, aproveitem a noite. Estou melhor aqui do que no bar. Não se sintam mal por mim, eu estou legal, mesmo. Estou ouvindo Eric Clapton. É, aquele CD do... A ligação caiu.

Ninguém devia acreditar que ele não estava mal, só porque tudo indicava que ele devia estar mal. Fazer o quê. Estirou os braços, as pernas, deve ter dormido logo em seguida, pensando nas roupas da Carolina, nos bibelôs da Carolina. Ela bem que gostava de Eric Clapton também, por influência dele...

***

Amanheceu e nenhum sinal de chuva. Dia pra uma camiseta qualquer, uma calça jeans, aquele tênis familiar. A vida ficava meio esquisita sem a Carolina, tinha que se acostumar. Às vezes ele pensava em fazer amizade com as pessoas do trabalho, ficava se perguntando por que eles não despertavam nada além de simpatia nele. Ia tentar mais uma vez naquele dia. Nem estava de mau-humor, ia ser fácil, podia passar o tempo mais rápido.

A mulher de cabelo vermelho mal pintado contava histórias do seu filho. Ele ouvia com desinteresse. Pensou em alguma coisa pra falar, mas nada acrescentava à conversa. Como as pessoas conseguiam se empolgar conversando sobre criança? Só ela ali tinha filho, droga. Mudem de assunto. Começaram a falar de uns filmes... um que ele tinha visto, tinha gostado, todo mundo tinha gostado aliás, mas pra quê falar sobre aquilo? E o outro... todo mundo tinha gostado, ele não. Começou expondo sua opinião, veio uma avalanche de idéias contrárias, ele até tentou insistir amigavelmente, depois voltou a se concentrar no computador à sua frente, fingiu que tinha encontrado, do nada, um monte de trabalho por fazer. Alguém tentava lembrar o nome daquele restaurante mexicano, perto dali, ele lembrava, lembrava e não falou, não tinha porquê. Alguém lembrou além dele, todo mundo ficou aliviado, mas o nome estava ligeiramente errado, ninguém reparou. Ah, que importava. Olhou os emails de novo, em busca de algum pra passar tempo, acabou lendo os antigos da Carolina.

A Carolina estava dando uma de teimosa fazia muito tempo. Resolveu ligar pra alguém, propor uma saída. Os outros podiam estar certos, ele podia conhecer alguém bacana, esquecer a Carolina... ou pelo menos se divertir enquanto ela não ligava. Vasculhou a memória, em busca das possibilidades. Eram poucas. Resolveu ligar para a Bianca. Capaz de ainda gostar dele. É, ia ligar para ela logo que chegasse em casa, prometeu a si mesmo.

***

- A Bianca não está, quer deixar recado?

***

Desistiu de fazer amizades no trabalho. Brincou com o computador o dia inteiro, como já era hábito. Nenhum email novo, pra variar.

- Oi Alexandre, você ligou ontem, né?
- Liguei sim...

Bianca continuava com a mesma voz. Um tom ligeiramente mais grave que o comum, mais lento também. Era tranqüila, bem tranqüila de conversar. Falou com ela 40 minutos no escuro, o volume do Eric Clapton abaixado, deixando passar só uns ruídos incongruentes. Estava ouvindo o mesmo CD há três dias. O Eric Clapton era realmente muito bom. Ia perguntar se a Bianca gostava, desistiu. Cansou de falar com ela, nem chamou pra sair. Disse que ia ligar outro dia pra marcarem alguma coisa, tinha que trabalhar cedo no dia seguinte. Ela se despediu como sempre, bem humorada. Desligou. Dois minutos no escuro, a voz dela ressoava, sem emoção. Lembrou que ela sabia que ele trabalhava à noite, ela mesma fazia o turno da manhã na mesma empresa. Riu dele mesmo. Se fosse a Carolina, teria jogado a mentira na cara dele, chamado de cínico. E terminaria com “a gente se vê amanhã”, no seu tom ranzinza. E ele a veria no dia seguinte, feliz e faceiro, e ela animada com alguma coisa nova que tinha descoberto por aí... É, a Carolina era fabulosa.

Levou mais tempo para dormir esse dia.

***

Nos dois dias seguintes era fim de semana, os amigos ligaram de novo de madrugada, bêbados, disseram que iam passar na casa dele e arrastá-lo pra fora de casa. Ele disse que estava vendo “A primeira noite de um homem” na TV, e que os comerciais já tinham acabado, tinha que voltar. Alguém murmurou alguma coisa do outro lado da linha. Desligaram. Ficou vendo filme e comendo chocolate, feliz. Nem ligou para a Bianca de novo. Ela mandou uma mensagem para o celular dele, ele respondeu alguma banalidade.

***

Na noite seguinte deixou o celular sem som. Era domingo. Voltou a tocar o mesmo CD, mas já estava cansando das músicas. Deixou num volume mais baixo, estava com preguiça de levantar e procurar outro disco naquela bagunça da casa.

Dormiu umas duas horas, acordou sem saber por quê. Bebeu água, revirou a TV, não achou nada, mas deixou ligada, o som competindo com o do CD. Adormeceu.

Acordou de novo pouco tempo depois. O celular piscava quatro chamadas não atendidas. Viu uma por uma, parou na terceira. Era da Carolina.

Tentou raciocinar a diferença de horário, devia fazer mais de meia hora. O cérebro ainda resistia, cheio de adormecimento do sono. Ficou ainda parado no escuro um tempo. Os sons se misturavam, começavam a irritar bastante. Ligou de volta, ninguém atendeu. Deitou, ficou olhando o teto escuro. Tentou imaginar se o som estava incomodando os vizinhos. Ligou de novo. Nada.

Levantou, desligou a TV e o som, vestiu uma blusa qualquer, destrancou a porta, desceu, foi ver a rua. Andou até um carro verde musgo parado ali perto, respirou fundo, tentou a porta: estava aberta.

Entrou com o coração eufórico. Carolina estava de vermelho, um vestido bonito que ela usava nas festas de família. Ele disse o nome dela um monte de vezes, olhando o rosto dela, a roupa dela, a mão dela. Ela olhava para frente, depois se virou, beijou os cabelos dele. Estava com uma expressão zangada ainda, mas o toque era macio, calmo, paciente. Ela respirava forte, estava com os olhos escuros, ele a achou linda. Disse que ela estava linda. Ela estava comendo um pacote de batata frita, ofereceu a ele. Ficaram os dois comendo batata frita no carro. O limpador de vidro estava ligado, andava pra lá e pra cá, mas não estava chovendo.

- Esse negócio faz um barulho irritante, não?

Ele concordou vagamente.

- Por que não desliga? Nem está chovendo.

Ela desligou. Depois pegou a batata frita de volta. E disse:

- A gente se vê amanhã.

Ela o beijou devagar, segurando o rosto dele com as duas mãos, depois abriu a porta.
Quando ele subiu, botou o Eric Clapton para tocar, deitou de novo na cama. Ficou lembrando do restaurante mexicano, perto do trabalho. Podia ir com a Carolina lá um dia desses.

***