O Encontro
Encontraram-se por acaso, em meio à Presidente Vargas.
Ela vinha do trabalho novo, em roupa social: camisa de botão, saia até o joelho, bolsa formal, sapato fechado. Misturava-se a toda aquela gente que passava apressada, na maioria também em roupa social. Mas ela... ela exibia um formalismo que não lhe cabia, e por isso mesmo orgulhava-se. Sentia-se, mesmo que deslocada sob aquela aparência, excitada por adentrar um mundo novo, cheio de regrinhas que ela assumia, passava a conhecer, deixando para o tempo livre suas excentricidades e estranhezas. Há muito tempo ela repudiara tais características, mas o tempo e as convivências haviam lhe ensinado a aprender a encarar as suas próprias diferenças com maturidade e compreensão. O seu mundo era restrito, pequeno, mais difícil de se achar. Não necessariamente melhor, mas, naturalmente a seus olhos, menos óbvio e, por isso, mais interessante. Dividia com determinadas pessoas esse pequeno mundo que os outros também ajudavam a construir, indicando dicas e pistas para a continuação desse. Freqüentava os lugares que se abriam a ela com mais naturalidade. Lia, ouvia o que a identificava. A roupa social, nisso tudo, era uma enganadora. Dava a ela um formato que não lhe cabia. Sentia-se, assim, aparentemente mais pertencente, mais comum, mais integrada ao mundo mais amplo que ela não admirava, mas do qual ela precisava. E sentia-se também ainda mais certa de sua identidade, pois que o trabalho e suas exigências eram apenas aparências, e a cada dia ela se lembrava do quanto aquilo não lhe signicava nada. No mais, era uma experiência nova, e isso já bastava.
Ele vinha no sentido contrário, vestido da forma de sempre. Despretensioso, natural, uma camiseta, uma calça jeans, as habituais correntes transpassando nos bolsos da calça, os cabelos presos, as tatuagens se insinuando sob a manga da camiseta. Andava, como diziam, largado. Os braços movimentavam-se muito, freqüentemente esbarrava em alguém na rua, mas não pedia desculpa, pois não notava. Não se sentia diferente, e nunca parara para pensar nisso. Desde cedo as amizades o encaminharam a um universo que ele acreditava ser o único existente, pois que o que chamavam de “padrão” era restrito a poucas pessoas. O comum, o normal, isso não existia. Até os que pareciam os mais evidentes tinham em si características peculiares que os diferenciavam. Reconhecia, contudo, sua pouca adesão a muita coisa que lhe diziam. Por isso andava por aí cheio de projetos, curtas independentes, lojas em sociedade com amigos, festivais de filmes, saraus com novos artistas, toda essa parafernália. Acreditava que um dia ainda se veria bem sucedido nisso tudo, realizado já era, amava cada coisa nova que lhe mostravam, câmeras, programas modernos de edição, fotografia urbana, arte misturada a tecnologia.
Ela não lhe reconheceu o rosto ao longe, só quando estavam muito próximos. A amplidão da avenida, cortada em suas várias faixas, permitia o movimento de inúmeros veículos que cortavam o asfalto deixando rastros de vento, velocidade e barulho, um barulho embriagante mas às vezes também insuportável. Era também som das pessoas, o movimento das pessoas, a mistura visual das pessoas e das lojas e dos prédios, uma confusão, uma mistura agradável desde que não em muita quantidade. Ela saía do trabalho, atravessava a avenida enquanto o sol ia sumindo, deixando um tom azulado sobre toda a cidade. Em meio a tantos rostos, ela só o viu por alguns segundos, enquanto se cruzavam, reconhecendo um o olhar do outro, analisando-se mutuamente. Ela reconheceu o mesmo personagem que várias noites encontrava, sem aviso prévio, em alguma noite da cidade, e que a embalava em sua conversa fluente, ainda mais desinibida com o alto volume da música de fundo. Eram conversas regadas a bebida, som, amigos, desencontros, iam embora sem avisar, às vezes encontravam-se de novo, voltavam a conversar. Tudo repentino, não planejado, não definido, assuntos aleatórios, discussões metafísicas, crises existenciais compartilhadas. Ele nunca lhe ligara, ela nunca soube muita coisa da rotina dele. Não sabiam os telefones, nunca haviam se visitado. Reservavam a surpresa das noites em que apareciam do nada e presenteavam um ao outro com sua presença e companhia. Talvez a pouca luz dos encontros os tivesse atrapalhado um pouco a se reconhecer durante o dia. Talvez a surpresa tenha adiado ainda mais a percepção de que não era um mero transeunte. Talvez tenham sido só três segundos, talvez mais, talvez menos.
Ela o fitou, sem desviar o olhar, surpresa, ainda mais do que quando o surpreendia às quatro horas da manhã em uma pista de dança ou um bar qualquer, sem já esperar vê-lo. Ele a reconheceu com satisfação e estranheza, julgando-a bem diferente de como costumava vê-la durante as noites. Os olhos sem lápis pareciam mais tranqüilos, doces, calmos. Mas o rosto conservava a mesma sinceridade que tanto lhe encantava. O andar era mais firme, agora que estava, provavelmente, em completo estado de sobriedade.
Passaram um pelo outro sem parar, sem se cumprimentar. Apenas olharam, sorriram de leve um para o outro, mantiveram o anonimato. Ele compreendeu, ela compreendeu. Reservaram aos poucos segundos a transmissão de uma mensagem abstrata mas perfeitamente nítida. Apenas se olharam, se reconheceram, sorriram, continuaram cada um o seu caminho. Ela pensou em olhar para trás, mas, mesmo que o tivesse feito, ele já estaria perdido de vista.
Ela vinha do trabalho novo, em roupa social: camisa de botão, saia até o joelho, bolsa formal, sapato fechado. Misturava-se a toda aquela gente que passava apressada, na maioria também em roupa social. Mas ela... ela exibia um formalismo que não lhe cabia, e por isso mesmo orgulhava-se. Sentia-se, mesmo que deslocada sob aquela aparência, excitada por adentrar um mundo novo, cheio de regrinhas que ela assumia, passava a conhecer, deixando para o tempo livre suas excentricidades e estranhezas. Há muito tempo ela repudiara tais características, mas o tempo e as convivências haviam lhe ensinado a aprender a encarar as suas próprias diferenças com maturidade e compreensão. O seu mundo era restrito, pequeno, mais difícil de se achar. Não necessariamente melhor, mas, naturalmente a seus olhos, menos óbvio e, por isso, mais interessante. Dividia com determinadas pessoas esse pequeno mundo que os outros também ajudavam a construir, indicando dicas e pistas para a continuação desse. Freqüentava os lugares que se abriam a ela com mais naturalidade. Lia, ouvia o que a identificava. A roupa social, nisso tudo, era uma enganadora. Dava a ela um formato que não lhe cabia. Sentia-se, assim, aparentemente mais pertencente, mais comum, mais integrada ao mundo mais amplo que ela não admirava, mas do qual ela precisava. E sentia-se também ainda mais certa de sua identidade, pois que o trabalho e suas exigências eram apenas aparências, e a cada dia ela se lembrava do quanto aquilo não lhe signicava nada. No mais, era uma experiência nova, e isso já bastava.
Ele vinha no sentido contrário, vestido da forma de sempre. Despretensioso, natural, uma camiseta, uma calça jeans, as habituais correntes transpassando nos bolsos da calça, os cabelos presos, as tatuagens se insinuando sob a manga da camiseta. Andava, como diziam, largado. Os braços movimentavam-se muito, freqüentemente esbarrava em alguém na rua, mas não pedia desculpa, pois não notava. Não se sentia diferente, e nunca parara para pensar nisso. Desde cedo as amizades o encaminharam a um universo que ele acreditava ser o único existente, pois que o que chamavam de “padrão” era restrito a poucas pessoas. O comum, o normal, isso não existia. Até os que pareciam os mais evidentes tinham em si características peculiares que os diferenciavam. Reconhecia, contudo, sua pouca adesão a muita coisa que lhe diziam. Por isso andava por aí cheio de projetos, curtas independentes, lojas em sociedade com amigos, festivais de filmes, saraus com novos artistas, toda essa parafernália. Acreditava que um dia ainda se veria bem sucedido nisso tudo, realizado já era, amava cada coisa nova que lhe mostravam, câmeras, programas modernos de edição, fotografia urbana, arte misturada a tecnologia.
Ela não lhe reconheceu o rosto ao longe, só quando estavam muito próximos. A amplidão da avenida, cortada em suas várias faixas, permitia o movimento de inúmeros veículos que cortavam o asfalto deixando rastros de vento, velocidade e barulho, um barulho embriagante mas às vezes também insuportável. Era também som das pessoas, o movimento das pessoas, a mistura visual das pessoas e das lojas e dos prédios, uma confusão, uma mistura agradável desde que não em muita quantidade. Ela saía do trabalho, atravessava a avenida enquanto o sol ia sumindo, deixando um tom azulado sobre toda a cidade. Em meio a tantos rostos, ela só o viu por alguns segundos, enquanto se cruzavam, reconhecendo um o olhar do outro, analisando-se mutuamente. Ela reconheceu o mesmo personagem que várias noites encontrava, sem aviso prévio, em alguma noite da cidade, e que a embalava em sua conversa fluente, ainda mais desinibida com o alto volume da música de fundo. Eram conversas regadas a bebida, som, amigos, desencontros, iam embora sem avisar, às vezes encontravam-se de novo, voltavam a conversar. Tudo repentino, não planejado, não definido, assuntos aleatórios, discussões metafísicas, crises existenciais compartilhadas. Ele nunca lhe ligara, ela nunca soube muita coisa da rotina dele. Não sabiam os telefones, nunca haviam se visitado. Reservavam a surpresa das noites em que apareciam do nada e presenteavam um ao outro com sua presença e companhia. Talvez a pouca luz dos encontros os tivesse atrapalhado um pouco a se reconhecer durante o dia. Talvez a surpresa tenha adiado ainda mais a percepção de que não era um mero transeunte. Talvez tenham sido só três segundos, talvez mais, talvez menos.
Ela o fitou, sem desviar o olhar, surpresa, ainda mais do que quando o surpreendia às quatro horas da manhã em uma pista de dança ou um bar qualquer, sem já esperar vê-lo. Ele a reconheceu com satisfação e estranheza, julgando-a bem diferente de como costumava vê-la durante as noites. Os olhos sem lápis pareciam mais tranqüilos, doces, calmos. Mas o rosto conservava a mesma sinceridade que tanto lhe encantava. O andar era mais firme, agora que estava, provavelmente, em completo estado de sobriedade.
Passaram um pelo outro sem parar, sem se cumprimentar. Apenas olharam, sorriram de leve um para o outro, mantiveram o anonimato. Ele compreendeu, ela compreendeu. Reservaram aos poucos segundos a transmissão de uma mensagem abstrata mas perfeitamente nítida. Apenas se olharam, se reconheceram, sorriram, continuaram cada um o seu caminho. Ela pensou em olhar para trás, mas, mesmo que o tivesse feito, ele já estaria perdido de vista.
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