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4.12.05

Summer of '68 *

O sol amanhecia lentamente, iluminando aos poucos os dois corpos na cama perto da janela. A garota dormia, profundamente; e a sua expressão fazia crer que todo o mundo estava plenamente estático; nada se movimentava em todo o universo a não ser pelo seu ato de respirar, regularmente, embora não parecesse que uma molécula de ar saísse de seu lugar naquele quarto. Do décimo primeiro andar, tudo lá embaixo tornava-se mais calmo, mais morno, e a cidade, que parecia cotidianamente um caos, aparentava uma calma insuportável. Pois o silêncio que inundava o quarto oprimia a mente de Dario, enquanto ele, deitado mas com a cabeça apoiado em uma das mãos, o cotovelo no colchão, olhava ela dormir, sem nenhum afeto. Ela se chamava Mariana, Luciana, Ana Paula. Qualquer coisa assim. Mas, mesmo tendo nome, ela simbolizava em si todas as outras mulheres que ele encontrara uma noite e com a qual acordara, na manhã seguinte, sentindo que todo o mundo se esvaziara e só sobrara ele.

Podia ver da janela tudo normal, as pessoas saindo para trabalhar, passear, estudar, se divertir. Pouco movimento, pois era sábado. Lá estavam as pessoas, como sempre estiveram, mas se ele descesse e tentasse falar com elas, elas não responderiam nem notariam a presença dele. E os locais da cidade o abrigariam como um intruso. Era como se ele estivesse aparentemente morto, ou todos os outros. Ele caminharia, assim, invisível, fingindo agir normalmente, até que o mundo começasse novamente a se encher de vida, a esquecer o vazio, a inspirar novamente ar. E ele alcançaria a margem, respirando, finalmente, como qualquer mortal, ouvindo os sons e sentindo os corpos alheios quando tropeçasse nas ruas. Tudo voltaria a ser o que era; mas não por enquanto. Por enquanto, a cidade continuava esvaziada, sem som, cheiro ou gosto; sem alma. Talvez ele estivesse sem alma; e, como uma cicatrização, ela voltasse a crescer, aos poucos, até permiti-lo viver novamente em seu corpo. Como acontece com a carcaça de alguns insetos.

Era bonita, mas nada de mais. Mesmo dormindo, podia-se ver o nariz reto, pequeno, os olhos bonitos, embora bastante manchados de maquiagem. Misturavam-se no lençol seus cabelos castanhos claros, espalhados pelo travesseiro, caídos sobre os ombros, a testa, os olhos. Ela tinha uma fisionomia tranqüila, pois estava dormindo. Mas essa tranqüilidade inspirava, em Dario, tristeza. Não um desespero. Era apenas algo triste. Ele perdera a alma, novamente. Deixara de ouvir o tráfego da manhã. Não sentia o movimento do ar nem no pequeno ambiente daquele quarto. Não sentia nem sua saliva nem a ausência dela. E, quando a garota acordasse, ela beijaria um corpo que não poderia sentir nada, nem o calor do rosto dela.

Pensou no que falar. Em como agir para não fazê-la ir embora tão rápido como todas as outras. Não que se afeiçoara dela, mas que esperasse para se despedir até ele sentir-se, novamente, dono de uma alma. Mas não havia o que dizer. Qualquer tentativa seria afetada. Eles se afastariam da mesma maneira que se aproximaram, e voltariam a ser estranhos um para o outro em meio à cidade.

Ela tinha sorte por não ter seu mundo esvaziado naquela manhã. Ficaria ali, deitada, até que, ao acordar, avistaria a cama vazia. Mas para ela era apenas a cama, enquanto para ele era todo o mundo que fora embora antes que ele acordasse. Não era uma troca injusta. E ele nunca fizera isso antes. Sempre tentara manter, no fim, o artificialismo do início. Se as músicas, o escuro, as luzes coloridas e as bebidas haviam permitido aquele encontro, ele sempre tentava despedir-se mantendo-se artificial. Ligaria mais tarde, ele prometia. Sairiam na noite seguinte. Dizia elogios. Fazia-se de satisfeito. E só assim ele poderia fechar aquele episódio com coerência.

Mas, naquela manhã, ele não fechou o episódio, e talvez por isso sua alma demorou algumas horas a mais para se reconstruir.

Ele saiu do prédio como se caminhasse entre fantasmas, uma cidade sem vida. Com todos os sentidos dormentes, não sentiu o Sol forte que cegava seus olhos. Procurou, por perto, algum lugar para comer, pois seu corpo tinha fome. Entrou em uma loja de conveniência, daquelas de posto de gasolina.

Lá, voltou a sentir um pouco do movimento do ambiente e os sons. Teve esperança de que não demoraria como das outras vezes. Tomou, portanto, seu café, um pão de batata, um pedaço de chocolate. Brincava de mergulhar o chocolate no café, distraidamente, quando ouviu no rádio da loja, em volume bem baixo, os acordes iniciais de uma velha canção que ele conhecia, tocados ao piano. Roger Waters começou a cantar. Ele reconheceu a música, e ficou ali, parado, olhando para o café, prestando atenção no que ouvia.

Não era algo que tocava nas rádios, ele nunca ouvira sem ser em casa, em seus discos. Mas naquela manhã, justamente àquele horário, aquela música chegara, por acaso, a ele. Ele, que nem conseguia ouvir nada alguns segundos antes.

Dario não comeu mais nada. Àquela hora, Mariana (?) talvez estivesse acordando e olhando em volta, enquanto ele fitava seu café, a poucos metros dela, mas já tão distante quanto um árabe no Oriente Médio. Ela precisaria aceitar que ele havia ido embora sem nem dizer bom dia; ele, precisaria que o atendente da loja lhe chamasse e perguntasse se ele estava bem para que pudesse levantar, meio perdido, tendo tomado apenas metade do que seu corpo precisava. Mas a fome nada incomodava.

Would you like to say something before you leave?
Perhaps you'd care to state exactly how you feel
We've said goodbye before we said hello
I hardly even like you
I shouldn't care at all
We met just six hours ago,
the music was too loud
from your bed I gained a day
and lost a bloody year
And I would like to know -
how do you feel?
How do you feel?
(…)


_________

*Trecho do meu futuro romance, "Travessa dos Poetas de Calçada", em constante fase de produção. Leiam o texto e ouçam a música, com o balanço do som voltado totalmente para a esquerda. É, pois é, assim mesmo.

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