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12.11.05

As Leis da Física

Eu nunca vou àquele shopping. Aliás, nunca vou a nenhum deles, pra falar a verdade. Pelo menos não sem um objetivo específico. Ficar dando voltas e voltas, olhando coisas incompráveis, vendo pessoas insossas passarem... Não, não é meu estilo. Mas é meu estilo sentar em qualquer lugar com ar condicionado quando não tenho mais nada pra fazer, e quando estou cansada de andar. Eu estou sempre cansada, aliás. Costumava brincar com os amigos que tinha nascido com 50 anos, e agora, 21 anos depois, estava com 71. É difícil não se cansar nessa idade. Além disso, considerando que, por ser mais baixa que o convencional, tenho que dar um número bem maior de passadas pra cumprir a mesma distância que os outros, a probabilidade de cansaço só aumenta. Pois é, vejam só, tenho todos os argumentos em minha defesa. E pra completar, é de meu estilo, também, essa prolixidade muitas vezes inútil, divagando sobre meus hábitos e minha idade imaginária.

Pois então eu ia dizendo que estava no shopping. Num shopping a que eu não ia fazia já uns dois anos. Por acaso estava por ali. Sim, muito satisfeita em meu banquinho, procurando elementos aleatórios em que me concentrar. Decidi-me afinal pelo arrumador da árvore de Natal - oh, esses decoradores adiantados! final de outubro e já estão apelando para o Natal. É que é a próxima exploração comercial depois do dia das crianças, me explicaram esses dias -, ajeitando bolas, laços, presentinhos, papais noéis, essa parafernália enjoada de todo ano.

Aonde vou chegar com tudo isso? Na pessoa que estava sentada no banquinho do outro lado da pracinha de shopping. Não sei se devo chamar de pracinha, mas, na falta de outro nome, qualifico aquele espaço vazio dedicado aos objetos natalinos como uma praça. Mas então a pessoa. Era um rosto familiar. Daquela familiaridade que você faz um esforço pra dar nome à sensação que vem uns dois segundos antes de o seu cérebro confirmar: sim, é ele. Oh céus, impossível. Ele se despediu definitivamente para a França, ia para nunca mais voltar. Podia estar visitando a família, quem sabe... Ou podia ter voltado. Fracassado e voltado. Não, não pense isso. Tente a melhor alternativa. Melhor para ele, e ele não merecia ter fracassado. Era uma pessoa inteligente, apesar de bastante tímida. Como conseguimos namorar sendo os dois tímidos, não sei. Antes mesmo de acontecer, uma amiga fizera um teatro bem convincente de como seria nossa relação: ele de um lado, eu de outro, os dois sem se olharem, escrevendo bilhetinhos de eu-te-amo e passando por baixo da mesa. Oh não, não chegou a ser isso, foi bem mais fácil, porque era uma compreensão mútua, e nenhum julgava as atitudes do outro como pedantismo ou incompatibilidade. Sim, bem mais fácil do que parecia. Tão fácil e simples que até a separação aconteceu naturalmente, como nenhuma outra depois dele. Da forma mais natural e saudável, e de repente ele estava embarcando para a França, e eu lhe comprei presentes, desejei boa sorte, dei um abraço de despedida, pedi notícias. Essas coisas. Infelizmente, a época não era a de Orkut, e ao longo dos cinco anos os postais e e-mails perderam o sentido e a freqüência, até se tornarem passado, enfim, até perdermos qualquer contato.

E eis que lá estava ele, do outro lado, tão parado quanto eu, e eu não reconheci aquele jeito de olhar em volta. Mas de repente, ele olhava pra mim, e eu pra ele, e devo ter ficado um bom tempo nessa sustentação, esquecida completamente da árvore de Natal e do seu arrumador, que por sinal caíra do banquinho e fazia uma careta de dor. Não ri. Mas apesar de o meu tórax estar explodindo, quase causando uma reorganização atmosférica de tanto movimento brusco causado pelas batidas do coração, o momento não era estranho. Era surpreendente, não esquisito. Por isso optei por evitar o meu tom melodramático que sempre uso nos textos. Preferi por esse relato mais leve, menos exagerado, sem aquele tom tristonho que me é tão característico. Outro dia, aliás, estava até me esforçando para não escrever mais coisas depressivas. Decidi: hoje vou escrever um texto feliz. Mas sobre o quê? Nenhuma idéia. Desisti. Só escrevo quando não estou alegre; não necessariamente triste, mas não alegre. Quando estou animada e feliz, desenho e brinco com imagens no Photoshop.

Voltemos novamente da digressão. Resolvi levantar, tomar coragem. Sim, eu consigo sair do lugar às vezes. E enquanto eu caminhava naquela direção, o sorriso me confirmou que, sim, era ele. Céus, como não caí em cima do arrumador da árvore? Ele conseguiu fazer o sorriso ficar ainda mais bonito que antes. Maldito. Devo ter tropeçado, não importa, mas sorri também, um sorriso sincero, verdadeiro mesmo. E ele levantou também, e me abraçou, e eu não sei o que falamos, porque a minha memória bloqueou. Não prestei muita atenção. Não devo ter ouvido nada dele, só prestava atenção na voz, mais adulta, mais firme, nos óculos, mais modernos, nos ombros, mais largos, na magreza, a de sempre, tão atraente e tão frágil, nos cabelos, oh os cabelos.

Sempre foram um problema. Ele os tinha bem longos e lisos e pretos quando nos conhecemos, e acho que sem isso nem teria prestado atenção nele. Depois ele cortou, e causou a primeira briga, um terror, uma tristeza enorme. Também, só de vingança, engordei 10 quilos pra ele. Mentira. Eu perdoava tudo. Ainda perdôo. Perdôo mais a outras pessoas do que a mim mesma. Se fosse tão condescendente assim comigo própria, talvez... não, não sei. Mas isso também não importa.

Definitivamente ele não era mais o mesmo. Fisicamente, até parecia que tinham se passado só dois anos, mas ele não transpirava o mesmo ar, não era o mesmo jeito de olhar, até o sotaque sofrera influência estrangeira. Julguei-o certamente mais bonito, mas isso nada significava. Preferia mais feio, mais tímido, mais meu. Que fosse. Veio-me à mente a letra de uma música sarcástica que eu conhecera recentemente, por ocasião de um fora: "A cada dia eu te amo menos e menos. Eu nem acredito que um dia nós fizemos sexo. Me sinto mal só de imaginar você se despindo". Achava a música divertida e engraçada, e tratei de afastá-la da cabeça, não tinha nada a ver com o momento. Pelo menos não o tom de deboche; só o não-reconhecimento, a estranheza de um reencontro após um intervalo de tempo.

De todas as diferenças, só achei triste o ramo de tecnologia pelo qual ele optara profissionalmente. Estranho. Discutia literatura comigo, tocávamos piano a quatro mãos, havíamos sido apresentados pela Ana Karênina, e de repente... nem lembrava bem o que seria uma quiáltera. É, as pessoas mudam. Eu havia mudado também, e ele notou cada diferença em mim, e eu concordei com tudo, até com o que eu não tinha reparado. Depois, um silêncio.

Voltamo-nos instintivamente para o decorador da árvore de Natal. Já não estava mais no banquinho, nem na escada, arrumava uns pacotes no chão. Sem querer, meu olhar se concentrou em uma bola dourada, bem no meio. Não sei por quê. Não sei por quanto tempo. Mas subitamente ela caiu, e só não quebrou porque era daquelas revestidas. Cheguei a me sentir brevemente uma paranormal (Por que caíra justamente aquela bola entre dezenas de outras? Medo.)

Lá ia o arrumador consertar a falha, e eu fiquei pensando, depois de me despedir e seguir meu caminho pra casa, sobre uma bobagem que me vinha à cabeça sempre que qualquer objeto caía inesperadamente. Ficava imaginando as forças atuando sobre aquele corpo, segundo todas as leis da Física, durante longas horas, longos minutos, ininterruptamente, progressivamente, insistentemente. O objeto continua lá, parado. E de repente...poft. Está no chão. Ninguém esbarrou nele. Ninguém nem passou perto. A mãe, boba que só, comenta: "Está vivo! Hahaha". Quando terá sido o início dessa pressão, desse sugar do objeto? Nem podia imaginar. Durante a noite, enquanto todos dormiam... ou apenas alguns segundos antes. De repente o objeto não está mais lá, caiu no chão. Você vai até ele, resgata-o, recoloca na mesa, na estante. Ou então ele se quebrou. E você constata, resignada, que a estante vai ficar, por enquanto, com aquela lacuna, aquele espaço vago.