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21.7.06

Sobre unhas, meias e cuidados

Emília todos os dias dá banho no seu filhinho de 4 anos; alguns dias ela dá banho no menino duas vezes, antes da escolinha e antes de ele dormir. Apara as unhas dele, tão pequenas nos dedinhos curtos. Escova os cabelos finos, castanhos, claros, lisos. Ela faz uma inspeção se as orelhas estão limpas, se ele escovou os dentes direitinho, e segura a escova junto com ele, para que ele vá aprendendo. Comprou-lhe roupas, sapatos, tênis, meias, bonés, bermudas, shorts, pijamas. Toda semana, ao passar pelas lojas, ela compra algo de novo para o menino, e quando ela chega em casa com o presente ele vem correndo abrir para ver o que é. Quando tem pouco dinheiro, ela compra alguma roupinha bem simples, ou um cinto, um acessório, só para não deixar de ter sempre algo de novo e bonito para o filhinho. Ele gosta dos presentes, dos carinhos, só não gosta da mãe insistindo para escovar os dentes, essas coisas que os filhos nunca gostam mas que são necessárias.

Na época em que Emília ficou grávida, foi por um acidente, e ela não gostou muito da surpresa. Tinha medo de criar um filho, das deformações no corpo, da falta de tempo. Achava que ainda não estava preparada. Depois, quando ele nasceu, tão pequeno, tão indefeso, ela foi aos poucos se acostumando. Ou tentando se acostumar.

Um dia, na festa de um amiguinho dele, enquanto ela ajudava o filho a se vestir, ele pediu com insistência para usar a meia vermelha. Mas a mãe não queria, não gostava da meia vermelha, estava com aparência de velha. Preferia uma branca. O menino queria muito a meia vermelha, e tanto chorou e esperneou que conseguiu vesti-la. Ele só não reparou, por ser ainda muito criança, na expressão triste e amedrontada da mãe.

Emília, durante a festinha, não conseguia evitar a lembrança de quando ela era adolescente, e roía unhas, e tinha que estar sempre pintando-as, para que ela conseguisse gostar de si mesma, das próprias mãos. Quase todos os dias ela verificava, ao acordar, como estavam seus dedos, e quando o esmalte estava estragado pela força dos dentes, inevitavelmente ela tinha mais dificuldade em levantar naquele dia.

14.7.06

Ei.....

Houve um dia, um dia estranho, alguém diria. Era bem de manhã...deve ter acordado bem antes das seis. Não sei dizer aonde ia, mas saiu cedo por algum motivo. As pessoas a essa hora começam em seus pontos de figurantes. Um na esquina. Outro entregando jornais. Um terceiro bêbado. Bem de manhã, os dias perdem os nomes, não são segunda nem terça nem quarta. Todos a essa hora estão sonolentos ou ocupados demais pra se lembrarem da ordem cronológica da semana. Pois então saiu cedo, e lembrou, mais tarde naquele mesmo dia, de naquele horário absurdo ter pensado que, puxa, às vezes as coisas que parecem ser boas de fato são. Surpreendeu-se um pouco por esse pensamento, mas não muito, pois a dormência do sono não permitiu. Mais tarde, uma canção falava sobre pequenas aranhas que se riam à vontade em meio à neve... Bu!, diria à aranha risonha. E teve vontade de encontrá-la, pra verificar se conseguiria divertir-se também ao Sol que estourava do lado de fora da janela. E riu sozinho, no escritório, com seu delírio centesimal.

And hey there Mr. Morning Sun, what kind of creature are you
I can't stare, but I know you're there
Goddamn, how I wish I knew

And hey there Mrs. Lovely Moon, you're lonely and you're blue
It's kind of strange the way you change
But then again we all do, too.

3.7.06

... *

A primeira vez que eu e ela fomos à cidade, pegamos algumas coisas e saímos pela estrada a pé. Eu devia ter 11 anos. Naquela época não tinha nada asfaltado por lá, não tinha televisão, não tinha luz elétrica. A gente tinha ouvido falar, mas parecia mais uma historinha boba de criança, não devia existir de verdade. A gente saiu antes do Sol, ela carregando as frutas, eu a muda de roupas e o medalhão. Não lembro pra que era o medalhão. Mas pesava, devia servir pra alguma coisa. Talvez a gente tenha vendido junto, porque eu não me lembro dele depois desse episódio.

Eu lembro muito bem da poeira da estrada voando em círculos na nossa frente. A gente andava e não via o fim do caminho, só uma mesma linha reta deitada. Deve ter sido uns 8 anos depois que uma moça muito culta me disse que chamava horizonte. Eu nunca mais esqueci.

A imagem surge na minha cabeça como se a gente fosse dois fantasmas. Não aqueles maus que assustavam a gente nas historinhas de criança, mas como as pessoas que vão para o céu e ficam aqui entre a gente como anjos da guarda. Eu não me senti assim na hora, acho que não. Mas quando me lembro, tenho a sensação de que os nossos passos eram muito leves, e aquele caminho enorme foi uma das coisas mais bonitas que eu me lembro de ter vivido quando criança. Eu teria andado por ele a minha vida inteira, se pudesse. Teria vivido naquela idade pra sempre, do lado dela pra sempre, mesmo sem saber, naquela época, que era tudo que eu queria. Que eu não precisava ver o resto do mundo, que aquilo me bastava.

A cidade, ela era estranha, mas era tão bonita... Ela ria sempre das luzes, apontava elas em todos os lugares, e ria dos barulhos, e puxava a manga da minha camisa, sempre me mostrando alguma coisa que no instante seguinte já tinha sumido.

A gente ia voltar depois de ver as luzes, mas aí amanheceu, e a cidade virou outra coisa. A gente acabou ficando, andando pra lá e pra cá, sem reparar na fome, carregando o medalhão que eu tinha pegado do meu tio. Ele disse que ia me dar quando eu ficasse rapaz, então não teria problema porque meio que já era meu. Não lembro por que a gente não voltou. A gente foi ficando, dia mais dia, noite mais noite, e foi se acostumando, e esquecendo de voltar. A gente vendeu algumas roupas pra poder ficar, e foi bom porque não tinha mais peso, nem o do medalhão. Tudo ficou ainda mais leve, e a gente andava por todos os cantos da cidade, não lembro como, não lembro pra quê. Lembro que ela continuava gostando muito das luzes, e sempre me mostrava uma nova antes de fechar os olhos pra dormir. Eu sempre dormia depois dela.

A gente nunca mais voltou. E depois disso, a gente viu outras cidades. A uma delas, eu já fui sozinho. Não lembro onde que eu a deixei, ou por que de repente eu estava sem ela, mas desse ponto em diante eu já não me fascinava mais por tudo aquilo. Talvez eu nem me lembrasse do onde a gente tinha vindo - a gente nunca saberia o caminho de volta mesmo. Fico me perguntando hoje por onde ela ficou, e como de repente a gente seguiu caminhos diferentes. Eu sentia falta de esperar alguém dormir, de ter alguém pra proteger, antes de adormecer. Mesmo assim eu demorava a pegar no sono, esperando não sei o quê. Eu sempre esperava alguma coisa que eu nunca soube.

Às vezes eu lembro disso, daquela primeira vez que a gente foi à cidade, eu e ela, atravessando o véu de poeira que cobria a estrada adormecida. Não sei o que mudou desde então. Não vejo mais as luzes como eu via antes. Elas às vezes me incomodam. Tento rir delas, mas não consigo. Eu agora preciso das roupas, eu vendo coisas inúteis pra comprar algumas delas. Não muitas, mas ainda assim eu preciso. Não sei que cidade era aquela que a gente viu primeiro. Talvez tenha sido uma especial. A gente nunca soube o nome dela, e hoje, depois de tanto tempo, deve estar bem diferente; eu nem conseguiria reconhecer. Não sei nem se ela algum dia realmente existiu. Eu nem reconheceria ela também, se algum dia passasse por mim. Não seria mais ela. Não teria aquele jeito de andar com os pés como se não soubessem que pisavam chão. Não importaria.

Mas de alguma forma eu vim parar aqui, e deve ter sido assim. É a única coisa que eu realmente me lembro dos anos passados. Às vezes eu acordo bem cedo, antes do Sol, e tento me lembrar de mais alguma coisa, mas não consigo. Tudo me foge. Eu acabo adormecendo de novo, fico no escuro, ainda esperando alguma coisa.

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*Eu achei esse texto meio brega. Mas escrevi assim mesmo, fazer o quê. Inspirado em "Chicago", música deprê do Sufjan Stevens.