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3.7.06

... *

A primeira vez que eu e ela fomos à cidade, pegamos algumas coisas e saímos pela estrada a pé. Eu devia ter 11 anos. Naquela época não tinha nada asfaltado por lá, não tinha televisão, não tinha luz elétrica. A gente tinha ouvido falar, mas parecia mais uma historinha boba de criança, não devia existir de verdade. A gente saiu antes do Sol, ela carregando as frutas, eu a muda de roupas e o medalhão. Não lembro pra que era o medalhão. Mas pesava, devia servir pra alguma coisa. Talvez a gente tenha vendido junto, porque eu não me lembro dele depois desse episódio.

Eu lembro muito bem da poeira da estrada voando em círculos na nossa frente. A gente andava e não via o fim do caminho, só uma mesma linha reta deitada. Deve ter sido uns 8 anos depois que uma moça muito culta me disse que chamava horizonte. Eu nunca mais esqueci.

A imagem surge na minha cabeça como se a gente fosse dois fantasmas. Não aqueles maus que assustavam a gente nas historinhas de criança, mas como as pessoas que vão para o céu e ficam aqui entre a gente como anjos da guarda. Eu não me senti assim na hora, acho que não. Mas quando me lembro, tenho a sensação de que os nossos passos eram muito leves, e aquele caminho enorme foi uma das coisas mais bonitas que eu me lembro de ter vivido quando criança. Eu teria andado por ele a minha vida inteira, se pudesse. Teria vivido naquela idade pra sempre, do lado dela pra sempre, mesmo sem saber, naquela época, que era tudo que eu queria. Que eu não precisava ver o resto do mundo, que aquilo me bastava.

A cidade, ela era estranha, mas era tão bonita... Ela ria sempre das luzes, apontava elas em todos os lugares, e ria dos barulhos, e puxava a manga da minha camisa, sempre me mostrando alguma coisa que no instante seguinte já tinha sumido.

A gente ia voltar depois de ver as luzes, mas aí amanheceu, e a cidade virou outra coisa. A gente acabou ficando, andando pra lá e pra cá, sem reparar na fome, carregando o medalhão que eu tinha pegado do meu tio. Ele disse que ia me dar quando eu ficasse rapaz, então não teria problema porque meio que já era meu. Não lembro por que a gente não voltou. A gente foi ficando, dia mais dia, noite mais noite, e foi se acostumando, e esquecendo de voltar. A gente vendeu algumas roupas pra poder ficar, e foi bom porque não tinha mais peso, nem o do medalhão. Tudo ficou ainda mais leve, e a gente andava por todos os cantos da cidade, não lembro como, não lembro pra quê. Lembro que ela continuava gostando muito das luzes, e sempre me mostrava uma nova antes de fechar os olhos pra dormir. Eu sempre dormia depois dela.

A gente nunca mais voltou. E depois disso, a gente viu outras cidades. A uma delas, eu já fui sozinho. Não lembro onde que eu a deixei, ou por que de repente eu estava sem ela, mas desse ponto em diante eu já não me fascinava mais por tudo aquilo. Talvez eu nem me lembrasse do onde a gente tinha vindo - a gente nunca saberia o caminho de volta mesmo. Fico me perguntando hoje por onde ela ficou, e como de repente a gente seguiu caminhos diferentes. Eu sentia falta de esperar alguém dormir, de ter alguém pra proteger, antes de adormecer. Mesmo assim eu demorava a pegar no sono, esperando não sei o quê. Eu sempre esperava alguma coisa que eu nunca soube.

Às vezes eu lembro disso, daquela primeira vez que a gente foi à cidade, eu e ela, atravessando o véu de poeira que cobria a estrada adormecida. Não sei o que mudou desde então. Não vejo mais as luzes como eu via antes. Elas às vezes me incomodam. Tento rir delas, mas não consigo. Eu agora preciso das roupas, eu vendo coisas inúteis pra comprar algumas delas. Não muitas, mas ainda assim eu preciso. Não sei que cidade era aquela que a gente viu primeiro. Talvez tenha sido uma especial. A gente nunca soube o nome dela, e hoje, depois de tanto tempo, deve estar bem diferente; eu nem conseguiria reconhecer. Não sei nem se ela algum dia realmente existiu. Eu nem reconheceria ela também, se algum dia passasse por mim. Não seria mais ela. Não teria aquele jeito de andar com os pés como se não soubessem que pisavam chão. Não importaria.

Mas de alguma forma eu vim parar aqui, e deve ter sido assim. É a única coisa que eu realmente me lembro dos anos passados. Às vezes eu acordo bem cedo, antes do Sol, e tento me lembrar de mais alguma coisa, mas não consigo. Tudo me foge. Eu acabo adormecendo de novo, fico no escuro, ainda esperando alguma coisa.

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*Eu achei esse texto meio brega. Mas escrevi assim mesmo, fazer o quê. Inspirado em "Chicago", música deprê do Sufjan Stevens.

1 Comments:

  • Ah, mas eu costumo gostar dessas suas coisas, assim, "breguinhas".

    Mas, you know, we could be siamese twins, comentário meu não vale. :)

    By Blogger Edson, at quinta-feira, julho 06, 2006  

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