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21.5.06

Cena 10 – [ Enquanto isso... ]

Já fazia quase duas horas que Mariana tinha deixado a sala quando a aula de biologia finalmente acabou e deu lugar à professora Kátia, que chegou excitadíssima anunciando um teste surpresa. Os alunos tinham comentado a ausência súbita da menina durante a leitura do professor de óculos de tartaruga, mas agora alguns ficaram curiosos em saber aonde ela tinha ido, e porque gozava de certos privilégios como aquele de deixar a sala sem autorização. Os nerds achavam um absurdo a falta de respeito com o professor dos óculos de tartaruga.

Na verdade, os comentários foram bem discretos, já que Mariana não era a atração principal da sala, mas o fato ganhou importância com o anúncio da prova surpresa, porque Luiza e Bianca tomaram as dores da amiga e começaram a discutir com a professora que não poderia haver prova na ausência de Mariana.

Kátia tentou argumentar com as meninas que a obrigação de Mariana era estar em sala e que, se ela não estava, logicamente ia perder a prova. Era simples, evidente, e era um fato, porque ela não deixaria de fazer o que devia por causa de apenas um aluno. Nisso, as duas meninas se exaltaram ainda mais e começaram a expor argumentos inválidos como se fossem os mais justos do mundo, daquele jeito pedante que as meninas bonitas têm de falar. A discussão avançava com vaias ou palmas do resto da turma, de acordo com o enunciador e o efeito das palavras de cada um. Quando Bianca soltou um “não é justo!” esganiçado, os meninos logo fizeram um “aaaiiiiii” de deboche. Depois foi a vez da professora: quando tentou impor sua autoridade dizendo que eles fariam o que ela determinasse, foi a vez dela de ser vaiada – inclusive por Bianca e Luiza. Mas depois, ao responder às meninas que elas não passavam de garotas mimadas querendo impor a vontade a qualquer custo, a turma toda explodiu em aplausos, ais, uis, interjeições do tipo e ruídos equivalentes, com direito a caras e bocas. Os alunos se empolgavam com o acontecimento, e começaram a surgir apostas de qual lado ganharia. A turma do fundão levantou e elaborou logo a torcida organizada das meninas bonitinhas. Os nerds se ajuntaram à professora e tentavam consolá-la, fazendo-se de superiores e maduros. O resto discutia entre si que o evento estava ou muito divertido ou extremamente insuportável, ah, insuportável.

Depois de uns 10 minutos a discussão perdeu força e a turma cansou da bagunça. A solução arranjada foi que as duas encrenqueiras teriam exatamente cinco minutos e meio para procurar a amiga e, se não a trouxessem no tempo marcado, a prova seria dada na ausência da menina. Enquanto isso, o resto da turma poderia revisar a matéria. Em silêncio, é claro. E se alguém desse “mais um pio” ficaria todo mundo com zero. E ponto final.

*

Um pouco longe dali, Augusto fazia a barba antes de ir trabalhar. A esposa dele, ainda mais feia por estar em desespero, abriu a porta do banheiro e anunciou:
- Ele sumiu.
Como o marido não respondesse e apenas a olhasse esperando o resto, ela repetiu:
- Sumiu.
No segundo seguinte desatou a chorar.

*

Luiza e Bianca seguiram caminhos opostos na escola, exibindo uma cara de autoridade como se aquela fosse uma missão importantíssima definida por algum alto órgão do governo. A situação, portanto, exigia um caminhar pedante e um balançar de cabelos especial. Flopt flopt: direita esquerda, direita esquerda. Quadris bambeantes. Hm, vamos lá.

Digamos então que Luiza se perdeu no caminho, em algum buraco negro de concreto localizado entre o pátio e o portão. Ela que fique por lá. Concentremo-nos em Bianca: parece mais empenhada, está até cronometrando a trajetória (lembremos que elas só têm 5 minutos e meio). Enquanto percorremos juntos os corredores produzidos em sistema fordista, talvez surja na mente dos leitores uma pungente dúvida sobre a real intenção das meninas. Parecem tão preocupadas com Mariana, não? Ou seria aquela necessidade simplista de ter à disposição a amiga mais inteligente para a hora da prova?

Eis que, depois do banheiro, do pátio e da sala dos professores, Bianca entra na biblioteca, esquece o tempo marcado e começa a se ocupar de uma conversa com um aluno da série acima. Ela derrete-se em sorrisos e simpatias. Tudo bem. Nesses segundos que restam para o término do prazo, só gostaria de ressaltar o quão caricata essa menina deveria ser. Ela faz o tipo menina bonita, sem cérebro e má. É esse o arquétipo derivado das historinhas infanto-juvenis e dos filmes pipoca. Teoricamente, portanto, ela está mais para o lado de vilã do que de mocinha, mesmo que não tenha feito nada de malévolo até o momento. Mas se voltarmos às duas opções que temos para encaixar em Bianca com relação às suas intenções, teríamos que inevitavelmente escolher entre: a boa e a ruim.

a) oh, pobre Bianca, tão amiga, tão sempre aí para todo mundo, que bonito, preocupada com o desempenho escolar de Mariana! Até correndo o risco de perder valiosos segundos na própria avaliação!
b) hm.... esssa Bianca não vale nada. Pensa que engana alguém? Que nada. No fundo, só quer saber de não se dar mal no teste-surpresa, afinal, ela não entende nada da matéria.

Eu me recuso. Então é o seguinte: paramos no tempo, congelamos a imagem, a bela Bianca sentadinha na biblioteca. Será ela boa ou má? Decidam uma forma de fugir do clichê. Seria breguíssimo fazê-la parecer mais uma vítima dos preconceitos da sociedade, não? Bom, eu acho.

*

Lá se vai Augusto pelas ruas. Tenta se lembrar dos lugares preferidos do filho, mas não se recorda de nada. Faz um esforço, pensa só no Mc Donald’s, mas Leo não é o tipo de criança viciada em hambúrguer. Visita as casas dos poucos amigos do filho, superando a vergonha de bater na porta de alguém para declarar fraqueza. As mães chegam a se comover, oferecem ajuda, mas Augusto nada pode sugerir como uma forma de contribuição. A porta se fecha, e ele volta a andar e a procurar outra possibilidade. Mas as ruas são vagas, e nada que ele vê assemelha-se a Leonardo. Aliás, ele finalmente se dá conta que não sabe, afinal, o que exatamente se pareceria com o seu filho.

*

Kátia estava sentada na mesa contando os minutos e lendo uma revista, dessa vez sem precisar disfarçar. A turma entretia-se em conversar, comentando os últimos fatos e notícias, enquanto alguns davam uma lida no livro para evitar o pior. A sala estava nesse estado de suspensão quando o relógio da professora marcou o final do prazo. Antes de ela abrir a boca para anunciar o início da prova e começar a distribuir as folhas, a porta se abriu para deixar entrar Luiza, esbaforida e nitidamente furiosa. Todos se viraram para esperar alguma coisa, mas a menina só olhou a professora e foi se sentar, sem falar nada. Ninguém mais entrou depois dela, nem Bianca nem Mariana.

*

No banheiro, Mariana mudava de posição de hora em hora, irritada com o desconforto de sua cabine, e tentando se concentrar no livro. Mas não conseguia passar das orelhas e da mini biografia do autor - “...leia também, de J.D. Salinger, Franny e Zooey, Nove Estórias,...”, dizia a propaganda na penúltima página.

*

Augusto entrou em casa cansado e envergonhado, duas horas depois do intimato de sua mulher. Ela continuava choramingando, e estava no telefone aparentemente sendo consolada e aconselhada por alguém da família. Aparentemente, também, o conteúdo da conversa não era muito enriquecedor, pelas respostas monossilábicas da esposa. Aproveitou a distração dela e foi direto para o quarto. Queria também falar com alguém, mas condenava-se ainda. Com medo de sua própria fraqueza, acabou negando ajuda quando ela poderia ser ainda a tempo.

*

O rebuliço cessara, mas mantinha-se mudo na sala. Kátia já estava irritada, e distribuiu a prova com má vontade. Luiza continuava em sua expressão de desafio, como se isso adiantasse alguma coisa. Os nerds, todos eufóricos, em sua inveja ressentida acreditavam finalmente terem-se vingado da beleza das colegas. Pelo menos uma vez a justiça era feita. Os garotos do fundo da sala pouco se importavam. O resto, ou a massa dos banais, acumulava indiferença. Kátia voltou pra sua mesa e recomeçou a folhear a revista, quase rasgando as páginas ao virá-las. Uma criaturinha levantou a mão.
- Professora, quanto vale esse teste?
Vale porcaria nenhuma. Como você paga esse colégio, as diretoras vão sempre dar um jeito de te passar de ano. Se valesse realmente alguma coisa eu estaria fazendo esses testes até hoje. É só pressão psicológica, entendeu, queridinho? A mente de vocês é fraca como a minha unha. É só eu fazer uma ameaçazinha que vocês se quebram. Escreve qualquer coisa e pára de me encher o saco porque...
- Não sei ainda. Mas vale muito. Muito mesmo. Ô se vale.
Kátia ainda se surpreendia como às vezes a turma inteira não entendia uma ironia.
- Professora...
Um nerd queria perguntar mais alguma coisa ultra essencial.
- Quem já tem 10 na média pode ir embora?
- O quê?!?
- Eu já estou com dez na média. Posso ficar lá fora?
- Pois se você não fizer esse teste vai perder todos esses dez pontinhos, querido.
O nerd não gostou da resposta, mas ficou em silêncio, e até satisfeito, pois já tinha conseguido se exibir. A sala então pareceu mergulhar na tranqüilidade. Um, dois, cinco minutos. Folhas virando, lápis riscando papel, olhares perdidos, costas curvadas. E aí mais um aluno levantou a mão.
- E as meninas que faltaram, professora?
Era uma menina, e nem da ala dos nerds era. Gorda, claro. Kátia, aliás, nunca tinha reparado naquele indivíduo antes. Mas a garota estava com um sorriso embutido, uma sobrancelha arqueada, uma súbita consciência exageradamente importante de si mesma, e mastigava um chiclete (provavelmente contrabandeado) com tanta propriedade que parecia a própria figura do anti-Cristo mirim.
- Qual seu nome, amorzinho?
- Laiana.
- Como é?
- Lai. Ã. Na.
- Luana?
- Laiana!
- Ah sim. Pois então, Laiana, eu não me lembro de ter incluído no teste alguma questão sobre qualquer um dos seus colegas de classe.
- Mas é que...
- E eu também não me lembro de ter permitido mais alguma manifestação sonora depois do início da avaliação.
- Eu só...
- E eu também não me lembro de algum dia na vida ter visto pessoas lindas, sociáveis, auto-confiantes e inteligentes se darem mal na vida ou ficarem deprimidas por causa de um testezinho-surpresa mixuruca igual a esse. Então, florzinha, se você acha que é capaz de lidar com essa hecatombe que seria você acertar menos da metade das questões, pode levantar, ir embora, passar essas duas horas fazendo as unhas na quadra. SÓ VOCÊ, ESTÁ ENTENDIDO? A mais ninguém está concedida essa liberdade. Pode levantar, largar a folha aí, tudo bem? Quem sabe assim você não se sente igual às outras que não estão aqui presentes. Quem sabe. Mas pelo que eu estou vendo, você ainda vai precisar dos meios banais de se dar bem na vida: escola, nota, avaliação, todas essas convenções. Porque esse seu cabelo maltratado, essa sua voz esganiçada, essa sua gordura e esse seu recalque de encalhada cai muito bem em você. Vai lá fora, vai. Aproveita e vê se tem uma pistola automática largada por aí. Costuma ser útil nesses casos.
Perdão, leitores. A resposta proferida por Kátia não foi essa. Segue-se a original:
- Laiana, meu amor. Faz o seguinte: fica lá fora nessas duas horas. Assim você vai ver o que acontece com quem perde o teste.
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