Eram oito irmãos. Cinco mulheres, três homens. Todos acostumei a chamar de tio e tia, desde criança, uns gostava mais, outro menos, e depois de um tempo não gostava mais de quase nenhum... Um pouco de implicância, talvez, mas a família toda era embutida em um pessimismo e uma tristeza que em mim já eram suficientes. A cada tentativa de buscar o ar na superfície, um deles vinha tentando invariavelmente me afogar de novo, alegando amor, cuidado, mas não percebiam que empurravam minha cabeça, não percebiam meus braços se debatendo, pedindo socorro...
E assim fui me afastando, em busca de um espaço maior onde pudesse alargar os braços, respirar, definir melhor o que era o querer bem, o respeito, que a eles se mostrava de modo tão deformado. Vi os acontecimentos de família cada vez mais distante ao longo dos anos, mais isenta, e já não compartilhava os eventos, nem casamentos, poucas vezes o Natal, isso aos 23 anos. Naturalmente, isso não isolava os sentimentos, o aperto de coração cada vez que os via se afogarem mutuamente, enquanto dividiam a concha de feijão e as jarras de suco de laranja. Eu os via calada, não mais ressentida, mas resignada em não fazer nada, já que tudo que tentara resultara apenas em condenações contra mim. Afinal, seria melhor deixá-los mergulharem juntos em suas fórmulas já conhecidas, suas maneiras estranhas e doídas de se relacionarem.
O filho mais velho morava um pouco longe. Uma pena, porque era um dos poucos com quem eu ainda conseguia manter uma conversa. Ele me vinha com aquelas idéias de o que é o orkut afinal? Me convida? Como faço para mudar minha foto? Coisas inexplicáveis para um tio. Eu ria, ensinava, dizia que ia visitá-lo um dias desses, mas hm, meio longe... Acabava ficando sempre para depois. Depois dele vinha Benjamim, que sofrera com a genética da família arcando com a mais grave esquizofrenia do núcleo. O terceiro na ordem de nascimentos, que era uma mulher, também sofreu de algumas perturbações mentais, mas pôde levar uma vida normal, se tratar, melhorar, enfim, muito mais brando. Outros irmãos também se mudaram para lugares mais distantes, outor estado, outro país. Afinal, ficaram na cidade a irmã mais velha, o irmão mais velho, a mais nova e minha mãe, que figurava no meio dessa ordem cronológica e sobre a qual não tenho muito a comentar, porque parecia a mais normal da família.
Dos oito, seis se casaram e deixaram a casa da mãe. Sobraram dois: Benjamim, o mais velho, devido a sua doença, pois precisava de cuidados; e Leny, a mais velha, pois não arranjara casamento. Para a idade dela, o motivo do não abandono da casa era trágico, vergonhoso. E ninguém nunca tocou no assunto. Ficaram, portanto, os quatro: pai, mãe, e os dois filhos - os problemáticos, os que não deram certo, os que fracassaram.
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Isso que eu vejo hoje, esses olhos frustrados de Leny, eu não via antes. Ligava, quando criança, e ficava a contar-lhe piadas pelo telefone, e ela ouvia feliz, ria pra me satisfazer. Brincava com as bonecas que ela costurava pra mim. Me amontoava, eu minha irmã e nossa avó, enquanto Leny fazia bolinhos e tirava geléias do fundo do armário. Eu não percebia solidão escondida naqueles olhos, mesmo porque perto dos parentes ela sempre se julgava completa, essa vã ilusão, essa supervalorização da família que depois tanto me sufocou. Eu não entendia o porquê de ela não ter uma família e filhos só pra ela, aquilo que todos os outros tios tinham. Benjamim era fácil. Era doente. Isso era aceitável, nítido, todos agiam de forma diferente com ele. Mas ela, eu não sabia por que sobrara ali naquela casa, vendo morrer o pai e a mãe, chorando o abandono cada vez maior, guardando as roupas deles, lavando as do irmão, cuidando de Benjamim doente, enquanto os outros cuidavam do colégio dos filhos, do jantar com o marido, a esposa, a ampliação de suas casas - um cômodo ali, uma piscina ali, um cachorrinho para as crianças.
Com a morte dos pais - a mãe morreu só aos 80 anos, mais de dez anos depois do marido -, a casa deles ficou vazia. Os irmãos eram os únicos que visitavam, mas agora não viam muitos motivos para se deslocarem das suas casas e doar atenção aos fracassados dos oito. Ouvir histórias de nada importante, comer a comida insossa de um domingo sem a mãe ali pra dar motivo de visita, consolar as perturbações do irmão doente. Nada disso era atrativo, e a casa, que costumava ser a principal da família por causa da presença da mãe, foi se tornando a mais ignorada de todas. Talvez Leny realmente não entendesse, talvez não quisesse aceitar. Passou a mendigar carinho, implorar amor, reclamar visitas, telefonemas. Constrangia, imprimia culpa, e Benjamim de nada tomava parte, era apenas o peso a ser carregado. O ar ia ficando mais sujo e triste na casa. A permanência ali fazia lembrar: não devia ser assim, não devia.
E eu via as fotos no quarto, sozinha, imaginava se Leny sempre fora assim, obcecada com a violência - medo de sair de casa, lá é perigoso, lá tem muito assalto, cuidado com os carros, podem roubar minha casa, podem roubar o lustre da sala. Via-a mais jovem, mas não conseguia destacar o rosto novo do antigo. Via os retratos já pesados, já tristes, já premeditando aquela casa vazia. Contavam histórias do rigor do pai, mas se todos haviam casado, por que não ela? Por que todos tinham uma profissão definida, menos ela? Não quis? Não conseguiu? Havia sentido tudo de modo mais forte, por ter sido a primeira. Era essa a resposta, era essa a hipótese que se lançava no ar em encontros casuais de família em que não havia a presença dela.
Era cômodo, muito mais, deixá-los um com o outro, a se cuidarem, a se consolarem, a se completarem. Se não haviam criado vida própria, que não atrapalhassem a dos irmãos. Implicitamente, eles compreendiam. Mas depois da morte da mãe, a tristeza nos olhos de Leny era menos velada, menos escondida. E mais incômoda.
Os únicos momentos em que cuidaram dela com total dedicação foi na época da doença. O Deus a que ela tanto se dedicava, aquele em nome do qual todos na família cometiam tantos erros, lhe presenteou com um tumor que lhe deixou paralisado um lado do rosto. Já sem beleza, acrescentou a ela a deformação, a vergonha, a fraqueza.
Depois da melhora, o retorno ao abandono, de forma que o que era bom trouxe de volta o que ela não queria lembrar. Mas mesmo assim agradeceu a Deus pela vida que continuava, pelo sucesso na mesa de operação. E eu agradeci também, tinha que agradecer. Só não foi muito sincero. Enquanto os oito irmãos e os primos distantes se concentravam em agradecimentos, todos reunidos em torno da mesa, os olhos fechados, as bocas emitindo aleluias, eu ouvia com o rosto franzido, tentando me convencer de que não seria hipócrita agradecer também.
E já que os anos continuavam pasando e eu não fazia questão de me reintegrar à família que me condenava por ter abandonado a igreja, já não disfarçava mais nada, não fazia carinha feliz quando eles chegavam. Cumprimentava, era educada, mas fugia da sala, não jantava junto, me trancava onde pudesse. Egoísmo, certamente. Como todos os outros. Talvez pior, por não disfarçar que a presença deles me lembrava o fracasso, a vida perdida, a falta de amizade, a neurose, o moralismo. E ela pedia desculpa, licença, obrigada, por favor, sabia que precisava das migalhas que oferecíamos. Estampava em si a consciência superficial de sua condição, de sua inferioridade que fora tachada pelos outros.
Enquanto isso Benjamim envelhecia, e os remédios para manter sua estabilidade mental – dormindo o dia inteiro, reclamando pouco, mantendo-se em seu lugar – foram tornando-o mas fraco. Dia a dia víamos as mãos mais lentas, os passos se arrastarem, a fala cada vez mais difícil de compreender. E ele acompanhando Leny, os dois na casa vazia.
Só ela não via a fraqueza dele. Continuava pedindo que carregasse isso, abrisse aquilo, afinal era homem, que ajudasse. Era a ele, e somente a ele, que ela dirigia brigas, palavras ríspidas. Era somente falando com ele que eu percebia o tom de voz diferente, o desprezo, aquele tom que ela sempre ouvia dos outros, retribuia direcionando-o a ele. Ignorava os efeitos do remédio, ignorava o que os outros viam: que não adiantava reclamar, ele ia perdendo a capacidade motora.
Mas ela continuava, e ninguém tinha coragem de repreender, e os dois iam, ele sempre atrás, obediente, ela buscando levantar um pouco mais o rosto, o rosto deformado. Despedia-se, cheia de humildade, e logo depois se virava, mandava que ele carregasse a bolsa, ande vamos logo, por que demora tanto, vai ficar tarde e perigoso, vamos voltar pra casa.