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19.11.05

Domingo

- Que horas são? - perguntou um homem desconhecido.
- Bom, são... deixe ver... sete horas da manhã. - respondeu a mulher.
- Sete. Manhã. Sete em ponto. - ele repetiu. - Hoje é quarta-feira, não?
- Quarta? Não, é domingo...
- Domingo? - ele parecia surpreso - Por quê?
"Deve estar bêbado", ela pensou.
- Porque ontem foi sábado.
Ele se deu por satisfeito.
- Obrigado - ele disse, e continuou seu caminho.
Mas o homem se virou e voltou:
- Desculpe, mas você já pensou em suicídio?
Ela o olhou apreensiva: a coisa começava a ficar esquisita.
- Não. Nunca. Por que vo...
- Por que não?
- Hã... ora....
Mas ela não conseguiu achar uma resposta clara. As pessoas se matam quando desistem da vida, não acham nela mais prazer algum. Era algo tão impossível para ela, que não teria como explicar. Mas naquele momento ela não teve tanta certeza disso.
O homem continuou fitando-a por um instante, depois foi embora.
E então, pela primeira vez, ela pensou em suicídio. Em um domingo, sete horas da manhã.

15.11.05

Pais & Filhos *

Se eu tivesse um filho, diria a ele:

Querido, risque as paredes.
Mas risque com vontade.
E pule na poltrona, e brinque de guerra de travesseiro.
E quando crescer, fale com estranhos.
Os mais estranhos.
E não dê ouvidos àqueles que dizem:
"Antes da brincadeira, o dever de casa!"
Você não está fazendo nada de errado.
Pode até explodir a casa.
Pode pular da janela.
Pode bater nos coleguinhas.
(todo mundo merece ser agredido às vezes)

________

* Livremente inspirado em frase de "Power Out", Arcade Fire: Cause nothin's hid from us, kids. You ain't foolin' nobody with the lights out!

14.11.05

(...)

Quando acordei hoje, ao lado do rádio que tinha colocado no chão tocando sempre a mesma música, ele repetia, cantando sempre no mesmo tom, aquelas frases. Começa com um assobio acompanhando o piano, e em algum momento uma mulher canta ao fundo. Estava quase anoitecendo já, tive a sensação de que aquela música tinha percorrido todo o meu sono. Jens Lekman insistia em inglês: se algum dia você precisar de um estranho para cantar no seu casamento, pode me chamar; eu sei todas as músicas, de Bacharach a David, todas as músicas de amor mais idiotas que um dia já tocaram seu coração.

E eu sei que eu vou passar a semana toda escrevendo essa frase em qualquer papel que aparecer na minha frente.

If you ever need a stranger to sing at your wedding...

12.11.05

As Leis da Física

Eu nunca vou àquele shopping. Aliás, nunca vou a nenhum deles, pra falar a verdade. Pelo menos não sem um objetivo específico. Ficar dando voltas e voltas, olhando coisas incompráveis, vendo pessoas insossas passarem... Não, não é meu estilo. Mas é meu estilo sentar em qualquer lugar com ar condicionado quando não tenho mais nada pra fazer, e quando estou cansada de andar. Eu estou sempre cansada, aliás. Costumava brincar com os amigos que tinha nascido com 50 anos, e agora, 21 anos depois, estava com 71. É difícil não se cansar nessa idade. Além disso, considerando que, por ser mais baixa que o convencional, tenho que dar um número bem maior de passadas pra cumprir a mesma distância que os outros, a probabilidade de cansaço só aumenta. Pois é, vejam só, tenho todos os argumentos em minha defesa. E pra completar, é de meu estilo, também, essa prolixidade muitas vezes inútil, divagando sobre meus hábitos e minha idade imaginária.

Pois então eu ia dizendo que estava no shopping. Num shopping a que eu não ia fazia já uns dois anos. Por acaso estava por ali. Sim, muito satisfeita em meu banquinho, procurando elementos aleatórios em que me concentrar. Decidi-me afinal pelo arrumador da árvore de Natal - oh, esses decoradores adiantados! final de outubro e já estão apelando para o Natal. É que é a próxima exploração comercial depois do dia das crianças, me explicaram esses dias -, ajeitando bolas, laços, presentinhos, papais noéis, essa parafernália enjoada de todo ano.

Aonde vou chegar com tudo isso? Na pessoa que estava sentada no banquinho do outro lado da pracinha de shopping. Não sei se devo chamar de pracinha, mas, na falta de outro nome, qualifico aquele espaço vazio dedicado aos objetos natalinos como uma praça. Mas então a pessoa. Era um rosto familiar. Daquela familiaridade que você faz um esforço pra dar nome à sensação que vem uns dois segundos antes de o seu cérebro confirmar: sim, é ele. Oh céus, impossível. Ele se despediu definitivamente para a França, ia para nunca mais voltar. Podia estar visitando a família, quem sabe... Ou podia ter voltado. Fracassado e voltado. Não, não pense isso. Tente a melhor alternativa. Melhor para ele, e ele não merecia ter fracassado. Era uma pessoa inteligente, apesar de bastante tímida. Como conseguimos namorar sendo os dois tímidos, não sei. Antes mesmo de acontecer, uma amiga fizera um teatro bem convincente de como seria nossa relação: ele de um lado, eu de outro, os dois sem se olharem, escrevendo bilhetinhos de eu-te-amo e passando por baixo da mesa. Oh não, não chegou a ser isso, foi bem mais fácil, porque era uma compreensão mútua, e nenhum julgava as atitudes do outro como pedantismo ou incompatibilidade. Sim, bem mais fácil do que parecia. Tão fácil e simples que até a separação aconteceu naturalmente, como nenhuma outra depois dele. Da forma mais natural e saudável, e de repente ele estava embarcando para a França, e eu lhe comprei presentes, desejei boa sorte, dei um abraço de despedida, pedi notícias. Essas coisas. Infelizmente, a época não era a de Orkut, e ao longo dos cinco anos os postais e e-mails perderam o sentido e a freqüência, até se tornarem passado, enfim, até perdermos qualquer contato.

E eis que lá estava ele, do outro lado, tão parado quanto eu, e eu não reconheci aquele jeito de olhar em volta. Mas de repente, ele olhava pra mim, e eu pra ele, e devo ter ficado um bom tempo nessa sustentação, esquecida completamente da árvore de Natal e do seu arrumador, que por sinal caíra do banquinho e fazia uma careta de dor. Não ri. Mas apesar de o meu tórax estar explodindo, quase causando uma reorganização atmosférica de tanto movimento brusco causado pelas batidas do coração, o momento não era estranho. Era surpreendente, não esquisito. Por isso optei por evitar o meu tom melodramático que sempre uso nos textos. Preferi por esse relato mais leve, menos exagerado, sem aquele tom tristonho que me é tão característico. Outro dia, aliás, estava até me esforçando para não escrever mais coisas depressivas. Decidi: hoje vou escrever um texto feliz. Mas sobre o quê? Nenhuma idéia. Desisti. Só escrevo quando não estou alegre; não necessariamente triste, mas não alegre. Quando estou animada e feliz, desenho e brinco com imagens no Photoshop.

Voltemos novamente da digressão. Resolvi levantar, tomar coragem. Sim, eu consigo sair do lugar às vezes. E enquanto eu caminhava naquela direção, o sorriso me confirmou que, sim, era ele. Céus, como não caí em cima do arrumador da árvore? Ele conseguiu fazer o sorriso ficar ainda mais bonito que antes. Maldito. Devo ter tropeçado, não importa, mas sorri também, um sorriso sincero, verdadeiro mesmo. E ele levantou também, e me abraçou, e eu não sei o que falamos, porque a minha memória bloqueou. Não prestei muita atenção. Não devo ter ouvido nada dele, só prestava atenção na voz, mais adulta, mais firme, nos óculos, mais modernos, nos ombros, mais largos, na magreza, a de sempre, tão atraente e tão frágil, nos cabelos, oh os cabelos.

Sempre foram um problema. Ele os tinha bem longos e lisos e pretos quando nos conhecemos, e acho que sem isso nem teria prestado atenção nele. Depois ele cortou, e causou a primeira briga, um terror, uma tristeza enorme. Também, só de vingança, engordei 10 quilos pra ele. Mentira. Eu perdoava tudo. Ainda perdôo. Perdôo mais a outras pessoas do que a mim mesma. Se fosse tão condescendente assim comigo própria, talvez... não, não sei. Mas isso também não importa.

Definitivamente ele não era mais o mesmo. Fisicamente, até parecia que tinham se passado só dois anos, mas ele não transpirava o mesmo ar, não era o mesmo jeito de olhar, até o sotaque sofrera influência estrangeira. Julguei-o certamente mais bonito, mas isso nada significava. Preferia mais feio, mais tímido, mais meu. Que fosse. Veio-me à mente a letra de uma música sarcástica que eu conhecera recentemente, por ocasião de um fora: "A cada dia eu te amo menos e menos. Eu nem acredito que um dia nós fizemos sexo. Me sinto mal só de imaginar você se despindo". Achava a música divertida e engraçada, e tratei de afastá-la da cabeça, não tinha nada a ver com o momento. Pelo menos não o tom de deboche; só o não-reconhecimento, a estranheza de um reencontro após um intervalo de tempo.

De todas as diferenças, só achei triste o ramo de tecnologia pelo qual ele optara profissionalmente. Estranho. Discutia literatura comigo, tocávamos piano a quatro mãos, havíamos sido apresentados pela Ana Karênina, e de repente... nem lembrava bem o que seria uma quiáltera. É, as pessoas mudam. Eu havia mudado também, e ele notou cada diferença em mim, e eu concordei com tudo, até com o que eu não tinha reparado. Depois, um silêncio.

Voltamo-nos instintivamente para o decorador da árvore de Natal. Já não estava mais no banquinho, nem na escada, arrumava uns pacotes no chão. Sem querer, meu olhar se concentrou em uma bola dourada, bem no meio. Não sei por quê. Não sei por quanto tempo. Mas subitamente ela caiu, e só não quebrou porque era daquelas revestidas. Cheguei a me sentir brevemente uma paranormal (Por que caíra justamente aquela bola entre dezenas de outras? Medo.)

Lá ia o arrumador consertar a falha, e eu fiquei pensando, depois de me despedir e seguir meu caminho pra casa, sobre uma bobagem que me vinha à cabeça sempre que qualquer objeto caía inesperadamente. Ficava imaginando as forças atuando sobre aquele corpo, segundo todas as leis da Física, durante longas horas, longos minutos, ininterruptamente, progressivamente, insistentemente. O objeto continua lá, parado. E de repente...poft. Está no chão. Ninguém esbarrou nele. Ninguém nem passou perto. A mãe, boba que só, comenta: "Está vivo! Hahaha". Quando terá sido o início dessa pressão, desse sugar do objeto? Nem podia imaginar. Durante a noite, enquanto todos dormiam... ou apenas alguns segundos antes. De repente o objeto não está mais lá, caiu no chão. Você vai até ele, resgata-o, recoloca na mesa, na estante. Ou então ele se quebrou. E você constata, resignada, que a estante vai ficar, por enquanto, com aquela lacuna, aquele espaço vago.

[Fragmento]

- Ih, seu piercing inflamou, né?
- Pois é... e olha que fiz há mais de três meses...
- É porque é cartilagem. Os meus da orelha e do nariz demoraram muito pra cicatrizar. Mas o do mamilo não deu problema nenhum, ficou ótimo! Quer ver?
- Precisa não...
- Deu quelóide também?
- Deu. Mas tô passando remédio.
- Diprogenta é ótimo.
- Esse mesmo.
- Eu tenho quelóide no joelho.
- Você tem um piercing no joelho?!?
- Não. Eu caí de bicicleta.
(...)

5.11.05

Família, família...

Eram oito irmãos. Cinco mulheres, três homens. Todos acostumei a chamar de tio e tia, desde criança, uns gostava mais, outro menos, e depois de um tempo não gostava mais de quase nenhum... Um pouco de implicância, talvez, mas a família toda era embutida em um pessimismo e uma tristeza que em mim já eram suficientes. A cada tentativa de buscar o ar na superfície, um deles vinha tentando invariavelmente me afogar de novo, alegando amor, cuidado, mas não percebiam que empurravam minha cabeça, não percebiam meus braços se debatendo, pedindo socorro...

E assim fui me afastando, em busca de um espaço maior onde pudesse alargar os braços, respirar, definir melhor o que era o querer bem, o respeito, que a eles se mostrava de modo tão deformado. Vi os acontecimentos de família cada vez mais distante ao longo dos anos, mais isenta, e já não compartilhava os eventos, nem casamentos, poucas vezes o Natal, isso aos 23 anos. Naturalmente, isso não isolava os sentimentos, o aperto de coração cada vez que os via se afogarem mutuamente, enquanto dividiam a concha de feijão e as jarras de suco de laranja. Eu os via calada, não mais ressentida, mas resignada em não fazer nada, já que tudo que tentara resultara apenas em condenações contra mim. Afinal, seria melhor deixá-los mergulharem juntos em suas fórmulas já conhecidas, suas maneiras estranhas e doídas de se relacionarem.

O filho mais velho morava um pouco longe. Uma pena, porque era um dos poucos com quem eu ainda conseguia manter uma conversa. Ele me vinha com aquelas idéias de o que é o orkut afinal? Me convida? Como faço para mudar minha foto? Coisas inexplicáveis para um tio. Eu ria, ensinava, dizia que ia visitá-lo um dias desses, mas hm, meio longe... Acabava ficando sempre para depois. Depois dele vinha Benjamim, que sofrera com a genética da família arcando com a mais grave esquizofrenia do núcleo. O terceiro na ordem de nascimentos, que era uma mulher, também sofreu de algumas perturbações mentais, mas pôde levar uma vida normal, se tratar, melhorar, enfim, muito mais brando. Outros irmãos também se mudaram para lugares mais distantes, outor estado, outro país. Afinal, ficaram na cidade a irmã mais velha, o irmão mais velho, a mais nova e minha mãe, que figurava no meio dessa ordem cronológica e sobre a qual não tenho muito a comentar, porque parecia a mais normal da família.

Dos oito, seis se casaram e deixaram a casa da mãe. Sobraram dois: Benjamim, o mais velho, devido a sua doença, pois precisava de cuidados; e Leny, a mais velha, pois não arranjara casamento. Para a idade dela, o motivo do não abandono da casa era trágico, vergonhoso. E ninguém nunca tocou no assunto. Ficaram, portanto, os quatro: pai, mãe, e os dois filhos - os problemáticos, os que não deram certo, os que fracassaram.

***

Isso que eu vejo hoje, esses olhos frustrados de Leny, eu não via antes. Ligava, quando criança, e ficava a contar-lhe piadas pelo telefone, e ela ouvia feliz, ria pra me satisfazer. Brincava com as bonecas que ela costurava pra mim. Me amontoava, eu minha irmã e nossa avó, enquanto Leny fazia bolinhos e tirava geléias do fundo do armário. Eu não percebia solidão escondida naqueles olhos, mesmo porque perto dos parentes ela sempre se julgava completa, essa vã ilusão, essa supervalorização da família que depois tanto me sufocou. Eu não entendia o porquê de ela não ter uma família e filhos só pra ela, aquilo que todos os outros tios tinham. Benjamim era fácil. Era doente. Isso era aceitável, nítido, todos agiam de forma diferente com ele. Mas ela, eu não sabia por que sobrara ali naquela casa, vendo morrer o pai e a mãe, chorando o abandono cada vez maior, guardando as roupas deles, lavando as do irmão, cuidando de Benjamim doente, enquanto os outros cuidavam do colégio dos filhos, do jantar com o marido, a esposa, a ampliação de suas casas - um cômodo ali, uma piscina ali, um cachorrinho para as crianças.

Com a morte dos pais - a mãe morreu só aos 80 anos, mais de dez anos depois do marido -, a casa deles ficou vazia. Os irmãos eram os únicos que visitavam, mas agora não viam muitos motivos para se deslocarem das suas casas e doar atenção aos fracassados dos oito. Ouvir histórias de nada importante, comer a comida insossa de um domingo sem a mãe ali pra dar motivo de visita, consolar as perturbações do irmão doente. Nada disso era atrativo, e a casa, que costumava ser a principal da família por causa da presença da mãe, foi se tornando a mais ignorada de todas. Talvez Leny realmente não entendesse, talvez não quisesse aceitar. Passou a mendigar carinho, implorar amor, reclamar visitas, telefonemas. Constrangia, imprimia culpa, e Benjamim de nada tomava parte, era apenas o peso a ser carregado. O ar ia ficando mais sujo e triste na casa. A permanência ali fazia lembrar: não devia ser assim, não devia.

E eu via as fotos no quarto, sozinha, imaginava se Leny sempre fora assim, obcecada com a violência - medo de sair de casa, lá é perigoso, lá tem muito assalto, cuidado com os carros, podem roubar minha casa, podem roubar o lustre da sala. Via-a mais jovem, mas não conseguia destacar o rosto novo do antigo. Via os retratos já pesados, já tristes, já premeditando aquela casa vazia. Contavam histórias do rigor do pai, mas se todos haviam casado, por que não ela? Por que todos tinham uma profissão definida, menos ela? Não quis? Não conseguiu? Havia sentido tudo de modo mais forte, por ter sido a primeira. Era essa a resposta, era essa a hipótese que se lançava no ar em encontros casuais de família em que não havia a presença dela.

Era cômodo, muito mais, deixá-los um com o outro, a se cuidarem, a se consolarem, a se completarem. Se não haviam criado vida própria, que não atrapalhassem a dos irmãos. Implicitamente, eles compreendiam. Mas depois da morte da mãe, a tristeza nos olhos de Leny era menos velada, menos escondida. E mais incômoda.

Os únicos momentos em que cuidaram dela com total dedicação foi na época da doença. O Deus a que ela tanto se dedicava, aquele em nome do qual todos na família cometiam tantos erros, lhe presenteou com um tumor que lhe deixou paralisado um lado do rosto. Já sem beleza, acrescentou a ela a deformação, a vergonha, a fraqueza.

Depois da melhora, o retorno ao abandono, de forma que o que era bom trouxe de volta o que ela não queria lembrar. Mas mesmo assim agradeceu a Deus pela vida que continuava, pelo sucesso na mesa de operação. E eu agradeci também, tinha que agradecer. Só não foi muito sincero. Enquanto os oito irmãos e os primos distantes se concentravam em agradecimentos, todos reunidos em torno da mesa, os olhos fechados, as bocas emitindo aleluias, eu ouvia com o rosto franzido, tentando me convencer de que não seria hipócrita agradecer também.

E já que os anos continuavam pasando e eu não fazia questão de me reintegrar à família que me condenava por ter abandonado a igreja, já não disfarçava mais nada, não fazia carinha feliz quando eles chegavam. Cumprimentava, era educada, mas fugia da sala, não jantava junto, me trancava onde pudesse. Egoísmo, certamente. Como todos os outros. Talvez pior, por não disfarçar que a presença deles me lembrava o fracasso, a vida perdida, a falta de amizade, a neurose, o moralismo. E ela pedia desculpa, licença, obrigada, por favor, sabia que precisava das migalhas que oferecíamos. Estampava em si a consciência superficial de sua condição, de sua inferioridade que fora tachada pelos outros.

Enquanto isso Benjamim envelhecia, e os remédios para manter sua estabilidade mental – dormindo o dia inteiro, reclamando pouco, mantendo-se em seu lugar – foram tornando-o mas fraco. Dia a dia víamos as mãos mais lentas, os passos se arrastarem, a fala cada vez mais difícil de compreender. E ele acompanhando Leny, os dois na casa vazia.

Só ela não via a fraqueza dele. Continuava pedindo que carregasse isso, abrisse aquilo, afinal era homem, que ajudasse. Era a ele, e somente a ele, que ela dirigia brigas, palavras ríspidas. Era somente falando com ele que eu percebia o tom de voz diferente, o desprezo, aquele tom que ela sempre ouvia dos outros, retribuia direcionando-o a ele. Ignorava os efeitos do remédio, ignorava o que os outros viam: que não adiantava reclamar, ele ia perdendo a capacidade motora.

Mas ela continuava, e ninguém tinha coragem de repreender, e os dois iam, ele sempre atrás, obediente, ela buscando levantar um pouco mais o rosto, o rosto deformado. Despedia-se, cheia de humildade, e logo depois se virava, mandava que ele carregasse a bolsa, ande vamos logo, por que demora tanto, vai ficar tarde e perigoso, vamos voltar pra casa.

Família, família... (intro)

Eram oito irmãos. Cinco mulheres, três homens. E os pais também, claro, mas esses não contam, porque geralmente morrem antes dos filhos. A não ser que alguma força trágica maior inverta a ordem, mas é difícil que em um número de oito isso ocorra, e não sobre nenhum pra contar história, deixando os pais se lamentando, e a mãe pensando que oito não foi suficiente, não foi suficiente... oh meu deus, não foi suficiente!, vamos tentar de novo, querido! Temos que ter filhos, temos que ter filhos! Logo agora se foi o último, bem agora que entrei na menopausa! Estamos perdidos, sim, perdidos...

Desculpe, a história não era pra ser sarcástica, era um drama. Vamos começar de novo.