Uma Carta
Olá, meu caro
Já faz um bom tempo que não escrevo. Talvez por negligência minha, eu sei, ou por um bocado de razões intangíveis que me levam a crer que... bom, deixemos disso. Não escrevi, e não tenho como negar: tudo que tenho passado me faz pensar bastante, tanto que ainda não consegui organizar tudo isso.
Algumas vezes cheguei a começar umas linhas, mas mal chegava ao final da primeira página já me sentia de modo completamente diverso, tornando inverdades tudo que tinha escrito anteriormente. E assim aconteceu algumas vezes, tenho inclusive vários papéis com cartas incompletas.
Na verdade, não sei o que te dizer. Você é um dos poucos que ainda torce verdadeiramente por mim, que não me cobra notícias por mera educação. E só saber isso já me conforta. O que aconteceu desde aquele tempo em que estive internado, foram tantos anos e até agora não sei bem se ainda há alguma chance de recuperar por completo tudo que gostaria.
Alguns diriam que a culpa é toda minha, e que por isso não mereço despertar compaixão de qualquer pessoa. De quem é a culpa, no entanto, não importa, visto que não altera o passado; sei, contudo, que parte da responsabilidade é minha. E outras partes, não cabe a mim apontar. O que tenho encontrado nos olhos de todos, nas entrelinhas das conversas do cotidiano, é essa afirmação subentendida: ele merece, ele que colha o que plantou. Talvez seja verdade. E, se isso os torna mais confiantes em suas convicções, não posso negar que se concretizou.
Devo ter dito tudo isso já algumas vezes; provavelmente. Mas me repito. Porque até hoje, desde que voltei ao mundo, por assim dizer, ainda não me reintegrei a ele. Como se a cada dia descobrisse a verdadeira data do dia anterior, estou sempre atrasado, sempre buscando aquilo que, tão logo eu atinja, já se tornou obsoleto. Assim, a minha vitória é sempre vista como um desperdício de tempo.
O tempo, aliás, tem sido meu pior inimigo. Quando penso nele, vejo um fantasma a me assombrar, a me lembrar que, por mais que eu tenha retornado à convivência normal, o passado persiste no presente, como uma cicatriz enorme no seu rosto que todos notam. A diferença é que a ninguém importa o que levou a isso. Importa banir o seu rosto da visão; importa eliminar esses traços mal acabados.
Desculpe, meu caro, tudo isso. Como eu disse, as coisas variam muito e em boa parte do tempo eu não me importo com isso. Sei que estarei sempre um passo atrás, mas é bom saber que estou de volta à vida, que estou ao lado de todos, que não estou em uma outra dimensão como eu costumava viver. Alguns diriam que me contento com migalhas; não acredito nisso. É preciso se satisfazer com as pequenas e as grandes vitórias, e disso me orgulho, de ver com precisão o que eu tenho alcançado. Cada um tem sua história; a ninguém tem importado a minha, e nem deveria ser o contrário. A gente aprende com a hostilidade a ver melhor a beleza que existe no mundo.
Soa livro de auto-juda tudo isso?
Não, não tenho lido esses livros. Tenho lido Maiakóvski, Hamsun, Tchekóv e Gogol, Proust e Joyce, Machado e Augusto dos Anjos. Misturo-os todos em um álbum de recordações, fatiando suas palavras e deglutindo-as com prazer, como nos velhos jantares a que comparecíamos, com nossa mocidade e nossa pretensão de viver. Tenho feito crescer também o restaurante, Marisa cuida dele como de um filho, as paredes agora estão decoradas a rigor e você precisa ver os cascalhos que infiltramos pelo chão, formando mosaicos típicos. Venha nos ver quando puder, e abrirei mais um vinho para lhe presentear, para agradecer pela sua amizade.
Um novo ano está prestes a começar, meu caro, e eu insisto em ver as viradas de tempo como promissoras. Às vezes, no fim do dia, fico a esperar os últimos clientes sairem, e enquanto isso as luzes vão se tornando mais amareladas. O ambiente escurece, e meu coração pesa por mais um dia que se passou. É aí que me lembro de todos os dias que virão, e de como há tantas coisas a serem vistas, provadas e tocadas. Me apoio no balcão, e preparo as novidades para o dia seguinte. Talvez amanhã eu não veja essa passagem de tempo como triste; sonho com esse dia. Sonho com o dia em que tudo terá, finalmente, passado, e eu terei alcançado a normalidade, e poderei afrouxar o passo, e caminhar ao lado daqueles que hoje precisam virar pra trás pra me olhar. É, tudo indica que esse dia vai chegar, mas mesmo agora eu já me sinto feliz. Sim, uma palavra perigosa de se usar, mas creio que tenho essa liberdade.
Torço para que você esteja feliz também, ao seu modo, com seus estudos e publicações, suas fórmulas e clínicas. Meu caro, despeço-me aqui, esperançoso e nostálgico como em todo fim de ano. Em breve poderei também ir te visitar, e te contar os pequenos fatos que se amontoam nessa distância que há entre nós.
Como diz uma certa canção de Chico: eu vejo a barra do dia surgindo pra gente cantar...
Um grande abraço.
............
Já faz um bom tempo que não escrevo. Talvez por negligência minha, eu sei, ou por um bocado de razões intangíveis que me levam a crer que... bom, deixemos disso. Não escrevi, e não tenho como negar: tudo que tenho passado me faz pensar bastante, tanto que ainda não consegui organizar tudo isso.
Algumas vezes cheguei a começar umas linhas, mas mal chegava ao final da primeira página já me sentia de modo completamente diverso, tornando inverdades tudo que tinha escrito anteriormente. E assim aconteceu algumas vezes, tenho inclusive vários papéis com cartas incompletas.
Na verdade, não sei o que te dizer. Você é um dos poucos que ainda torce verdadeiramente por mim, que não me cobra notícias por mera educação. E só saber isso já me conforta. O que aconteceu desde aquele tempo em que estive internado, foram tantos anos e até agora não sei bem se ainda há alguma chance de recuperar por completo tudo que gostaria.
Alguns diriam que a culpa é toda minha, e que por isso não mereço despertar compaixão de qualquer pessoa. De quem é a culpa, no entanto, não importa, visto que não altera o passado; sei, contudo, que parte da responsabilidade é minha. E outras partes, não cabe a mim apontar. O que tenho encontrado nos olhos de todos, nas entrelinhas das conversas do cotidiano, é essa afirmação subentendida: ele merece, ele que colha o que plantou. Talvez seja verdade. E, se isso os torna mais confiantes em suas convicções, não posso negar que se concretizou.
Devo ter dito tudo isso já algumas vezes; provavelmente. Mas me repito. Porque até hoje, desde que voltei ao mundo, por assim dizer, ainda não me reintegrei a ele. Como se a cada dia descobrisse a verdadeira data do dia anterior, estou sempre atrasado, sempre buscando aquilo que, tão logo eu atinja, já se tornou obsoleto. Assim, a minha vitória é sempre vista como um desperdício de tempo.
O tempo, aliás, tem sido meu pior inimigo. Quando penso nele, vejo um fantasma a me assombrar, a me lembrar que, por mais que eu tenha retornado à convivência normal, o passado persiste no presente, como uma cicatriz enorme no seu rosto que todos notam. A diferença é que a ninguém importa o que levou a isso. Importa banir o seu rosto da visão; importa eliminar esses traços mal acabados.
Desculpe, meu caro, tudo isso. Como eu disse, as coisas variam muito e em boa parte do tempo eu não me importo com isso. Sei que estarei sempre um passo atrás, mas é bom saber que estou de volta à vida, que estou ao lado de todos, que não estou em uma outra dimensão como eu costumava viver. Alguns diriam que me contento com migalhas; não acredito nisso. É preciso se satisfazer com as pequenas e as grandes vitórias, e disso me orgulho, de ver com precisão o que eu tenho alcançado. Cada um tem sua história; a ninguém tem importado a minha, e nem deveria ser o contrário. A gente aprende com a hostilidade a ver melhor a beleza que existe no mundo.
Soa livro de auto-juda tudo isso?
Não, não tenho lido esses livros. Tenho lido Maiakóvski, Hamsun, Tchekóv e Gogol, Proust e Joyce, Machado e Augusto dos Anjos. Misturo-os todos em um álbum de recordações, fatiando suas palavras e deglutindo-as com prazer, como nos velhos jantares a que comparecíamos, com nossa mocidade e nossa pretensão de viver. Tenho feito crescer também o restaurante, Marisa cuida dele como de um filho, as paredes agora estão decoradas a rigor e você precisa ver os cascalhos que infiltramos pelo chão, formando mosaicos típicos. Venha nos ver quando puder, e abrirei mais um vinho para lhe presentear, para agradecer pela sua amizade.
Um novo ano está prestes a começar, meu caro, e eu insisto em ver as viradas de tempo como promissoras. Às vezes, no fim do dia, fico a esperar os últimos clientes sairem, e enquanto isso as luzes vão se tornando mais amareladas. O ambiente escurece, e meu coração pesa por mais um dia que se passou. É aí que me lembro de todos os dias que virão, e de como há tantas coisas a serem vistas, provadas e tocadas. Me apoio no balcão, e preparo as novidades para o dia seguinte. Talvez amanhã eu não veja essa passagem de tempo como triste; sonho com esse dia. Sonho com o dia em que tudo terá, finalmente, passado, e eu terei alcançado a normalidade, e poderei afrouxar o passo, e caminhar ao lado daqueles que hoje precisam virar pra trás pra me olhar. É, tudo indica que esse dia vai chegar, mas mesmo agora eu já me sinto feliz. Sim, uma palavra perigosa de se usar, mas creio que tenho essa liberdade.
Torço para que você esteja feliz também, ao seu modo, com seus estudos e publicações, suas fórmulas e clínicas. Meu caro, despeço-me aqui, esperançoso e nostálgico como em todo fim de ano. Em breve poderei também ir te visitar, e te contar os pequenos fatos que se amontoam nessa distância que há entre nós.
Como diz uma certa canção de Chico: eu vejo a barra do dia surgindo pra gente cantar...
Um grande abraço.
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1 Comments:
"Como se a cada dia descobrisse a verdadeira data do dia anterior, estou sempre atrasado, sempre buscando aquilo que, tão logo eu atinja, já se tornou obsoleto."
Pra mim, a melhor frase do texto. Tão boa que roubei e coloquei como frase do msn. Depois eu coloco os direitos autorias num envelope e envio pra sua casa.
O texto está ótimo. De verdade.
Faz até a gente esquecer o pecado que é VOCÊ citar Chico Buarque.
By Anônimo, at quarta-feira, dezembro 21, 2005
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