Garotas, cruzem as pernas e ajeitem a franja
Cena 1 - [apresentação de nossos queridos meninos e meninas, e sugestões vagas do possível assunto a ser abordado por este texto inútil]
“Tédio, sempre presente companheiro, sentado ao fundo da sala, a nos contemplar com seu olhar pedante”
Essa era a inscrição que flutuava acima da cabeça mal penteada da professora ..., resultado de um consenso implícito entre os colegiais do ... Pois olhem para trás, garotos, e verão o indesejado companheiro, em vez de apenas instalar-se ao fundo assistindo todas as aulas sem precisar fazer provas, passeando entre as carteiras, distribuindo acenos e beliscões, que mal acordavam as mentes desatentas (“ai, sai, não enche!”).
Para um colégio não muito rico, os ventiladores bastavam. Eram eles que se ocupavam de manter algum ruído presente na sala além da voz pouco agradável da professora .... Em outras aulas, o burburinho tomava conta, às vezes os alunos chegavam a participar das aulas, como a da professora Kátia. Mas essa... essa não. Essa nem dava vontade de falar. Como naqueles dias mais quentes do verão, tão quentes que derretiam a pele, os sorvetes de chocolate, e a animação para fazer qualquer coisa além de se refestelar no ar condicionado.
Sigamos o Sr. Tédio, em seu passeio sarcástico pela sala. À frente, temos nossos exemplares de nerds, feiosos e tão esforçados; alguns até mesmo inteligentes. Na segunda fileira, bem afastada dos da frente, para evitar o contágio, exemplares insossos: uma garota roendo a bic; uma outra de boca aberta, quase a babar, tentando se enganar de que está prestando atenção no quadro; uma terceira, incrivelmente gorda, mentalmente fazendo contas – todas erradas - de quantas calorias ingeriu até o momento, e se vai poder engolir as balinhas que sobraram do dia anterior; finalmente um espécime masculino, com um sorriso besta no rosto, que me recuso a explorar seu significado – não pode ser algo lá muito bom mesmo. Outros alunos terminam a fileira sem muita glória. Pulemos a terceira, que mais parece uma cópia alternada da segunda. A quarta: grupinhos de meninas à esquerda, uma dormindo no ombro da outra, e de meninos à direita, nenhum se encostando no ombro do outro não, só tocando de vez em quando para alguma agressão ocasional – fraca, diga-se de passagem, pois não há ânimo para briguinhas na presença da professora.... Quinta fileira, ei-la, portanto: o insigne trio, digno de ser nomeado – Luiza, Bianca e Mariana.
Luiza querida, olhe para a câmera, dê uma piscadinha charmosa. Percebem? Ela é irresistível. Aos 16 anos, coleciona três ex-namorados e dois atuais (calma Luiza, não revelaremos os nomes). Tem pintas estratégicas ao longo do corpo. Sofre de indisposição ao acordar. Ontem mesmo aparou as pontas do cabelo loiro, e aproveitou para retocar a tintura. Nada muito artificial, claro. Não sei de onde tirou essa mania de sempre pender a cabeça, de um lado para o outro, enquanto observa os outros. Morde os lábios com freqüência. Odeia a cor azul. Faz escova na franja, o que a obriga a acordar dez minutos antes, e a sopra pra cima a todo momento. Agora mesmo, por exemplo, lá vai a mecha de cabelo subindo displicentemente, sob o olhar da dona, com a nuca recostada na cadeira, e volta novamente a cobrir os cílios da menina. Ela sorri vagamente, cega pela franja, e continua a soprar. Por dois segundos ela enxerga o teto; depois, novamente um clarão amarelo cobre-lhe os olhos.
Bianca é a morena do trio (insira aqui sua piadinha infame sobre a relação entre cor de cabelo e capacidade mental). Hiperativa, à primeira vista. Tamborila os dedos, torce o pescoço em todas as direções, confere as horas, puxa assunto com as outras - sem muito sucesso -, brinca a distância com os garotos bonitos da sala, com sorrisinhos e sinais. A mãe dela tem apenas 35 anos, e acabou de fazer uma cirurgia plástica, o que gerou assunto por uma semana entre a ala masculina da classe. O pai dela usa marca-passo desde a adolescência. O psicólogo dela tenta há meses fazê-la falar algo de dramático sobre a vida. Bianca acaba de completar a página do livro com linhas escritas seu próprio nome. BiancaBiancaBiancaBiancaBianca. Suspiro de resignação.
Mariana, também loira, descendente de brasileiros, concebida em um laboratório (seu pai é médico, e casou-se com sua secretária). Felizmente, ela consegue dispensa para as aulas de educação física, o que lhe permite passar mais tempo passeando pelos corredores, com o namorado ou com o vizinho dele – um menino de apenas 11 anos, ruivo e simpático, que não gosta quando os dois fingem serem seus pais. Umas duas vezes ela passou o tempo da educação física sentada na biblioteca, tentando decidir se acreditava em Deus e fingindo que lia Édipo Rei. Outras, ficou recostada na grade da quadra, tentando se convencer de que a escola era um lugar divertido de se estar, cheio de amigos ao redor, e atividades interessantes pra se fazer. Outras, ainda, ela sentou no degrau atrás do refeitório e ficou contando o tempo, reiniciando a contagem de três em três minutos. No exato momento, o seu rosto é de uma seriedade comovente. Olha a professora, mas não presta atenção. Às vezes anota algumas frases soltas no caderno. “E de repente fez-se a luz, e ela era...”. “O Romantismo surgiu como uma forma de...”. “Os Sofrimentos do Jovem Werther, condenado pelo público da época por...”.
Atrás delas, uma fileira de garotos bagunceiros, iludidos por acharem que não são os últimos da sala – o Sr. Tédio, agora, acaba de cutucar os nerds da primeira fila, gerando um bocejo bem vagaroso em um deles.
Luiza pisca os olhos, de cabeça baixa, olhando o espaço de ar acima da inscrição.
Bianca rói as unhas, depois repara se estragou o esmalte.
Mariana continua de braços cruzados. Acredita ter visto alguém passar pela porta, à direita. Ela vira o rosto, atenta, e o verde dos seus olhos escurece um pouco, mas ela só vê a parede do outro lado do corredor. Volta-se para a frente. O seu perfil de traços bem definidos, com um quê de adulto. Enquanto ela não vê, o flash de uma cabeça ruiva passa pelo vidro da porta, e logo some. Reaparece, e some novamente. Mariana se vira, a tempo de ver o topo de uma cabecinha, alguém aparentemente se esticando para alcançar o vidro, e os olhos se infiltrando na sala, em direção à menina. Ela o reconhece, e sorri para ele. Rapidamente o seu rosto se enche de luz, e a sua beleza realça. Mas ele não sorri de volta, e desaparece no corredor.
***
“Tédio, sempre presente companheiro, sentado ao fundo da sala, a nos contemplar com seu olhar pedante”
Essa era a inscrição que flutuava acima da cabeça mal penteada da professora ..., resultado de um consenso implícito entre os colegiais do ... Pois olhem para trás, garotos, e verão o indesejado companheiro, em vez de apenas instalar-se ao fundo assistindo todas as aulas sem precisar fazer provas, passeando entre as carteiras, distribuindo acenos e beliscões, que mal acordavam as mentes desatentas (“ai, sai, não enche!”).
Para um colégio não muito rico, os ventiladores bastavam. Eram eles que se ocupavam de manter algum ruído presente na sala além da voz pouco agradável da professora .... Em outras aulas, o burburinho tomava conta, às vezes os alunos chegavam a participar das aulas, como a da professora Kátia. Mas essa... essa não. Essa nem dava vontade de falar. Como naqueles dias mais quentes do verão, tão quentes que derretiam a pele, os sorvetes de chocolate, e a animação para fazer qualquer coisa além de se refestelar no ar condicionado.
Sigamos o Sr. Tédio, em seu passeio sarcástico pela sala. À frente, temos nossos exemplares de nerds, feiosos e tão esforçados; alguns até mesmo inteligentes. Na segunda fileira, bem afastada dos da frente, para evitar o contágio, exemplares insossos: uma garota roendo a bic; uma outra de boca aberta, quase a babar, tentando se enganar de que está prestando atenção no quadro; uma terceira, incrivelmente gorda, mentalmente fazendo contas – todas erradas - de quantas calorias ingeriu até o momento, e se vai poder engolir as balinhas que sobraram do dia anterior; finalmente um espécime masculino, com um sorriso besta no rosto, que me recuso a explorar seu significado – não pode ser algo lá muito bom mesmo. Outros alunos terminam a fileira sem muita glória. Pulemos a terceira, que mais parece uma cópia alternada da segunda. A quarta: grupinhos de meninas à esquerda, uma dormindo no ombro da outra, e de meninos à direita, nenhum se encostando no ombro do outro não, só tocando de vez em quando para alguma agressão ocasional – fraca, diga-se de passagem, pois não há ânimo para briguinhas na presença da professora.... Quinta fileira, ei-la, portanto: o insigne trio, digno de ser nomeado – Luiza, Bianca e Mariana.
Luiza querida, olhe para a câmera, dê uma piscadinha charmosa. Percebem? Ela é irresistível. Aos 16 anos, coleciona três ex-namorados e dois atuais (calma Luiza, não revelaremos os nomes). Tem pintas estratégicas ao longo do corpo. Sofre de indisposição ao acordar. Ontem mesmo aparou as pontas do cabelo loiro, e aproveitou para retocar a tintura. Nada muito artificial, claro. Não sei de onde tirou essa mania de sempre pender a cabeça, de um lado para o outro, enquanto observa os outros. Morde os lábios com freqüência. Odeia a cor azul. Faz escova na franja, o que a obriga a acordar dez minutos antes, e a sopra pra cima a todo momento. Agora mesmo, por exemplo, lá vai a mecha de cabelo subindo displicentemente, sob o olhar da dona, com a nuca recostada na cadeira, e volta novamente a cobrir os cílios da menina. Ela sorri vagamente, cega pela franja, e continua a soprar. Por dois segundos ela enxerga o teto; depois, novamente um clarão amarelo cobre-lhe os olhos.
Bianca é a morena do trio (insira aqui sua piadinha infame sobre a relação entre cor de cabelo e capacidade mental). Hiperativa, à primeira vista. Tamborila os dedos, torce o pescoço em todas as direções, confere as horas, puxa assunto com as outras - sem muito sucesso -, brinca a distância com os garotos bonitos da sala, com sorrisinhos e sinais. A mãe dela tem apenas 35 anos, e acabou de fazer uma cirurgia plástica, o que gerou assunto por uma semana entre a ala masculina da classe. O pai dela usa marca-passo desde a adolescência. O psicólogo dela tenta há meses fazê-la falar algo de dramático sobre a vida. Bianca acaba de completar a página do livro com linhas escritas seu próprio nome. BiancaBiancaBiancaBiancaBianca. Suspiro de resignação.
Mariana, também loira, descendente de brasileiros, concebida em um laboratório (seu pai é médico, e casou-se com sua secretária). Felizmente, ela consegue dispensa para as aulas de educação física, o que lhe permite passar mais tempo passeando pelos corredores, com o namorado ou com o vizinho dele – um menino de apenas 11 anos, ruivo e simpático, que não gosta quando os dois fingem serem seus pais. Umas duas vezes ela passou o tempo da educação física sentada na biblioteca, tentando decidir se acreditava em Deus e fingindo que lia Édipo Rei. Outras, ficou recostada na grade da quadra, tentando se convencer de que a escola era um lugar divertido de se estar, cheio de amigos ao redor, e atividades interessantes pra se fazer. Outras, ainda, ela sentou no degrau atrás do refeitório e ficou contando o tempo, reiniciando a contagem de três em três minutos. No exato momento, o seu rosto é de uma seriedade comovente. Olha a professora, mas não presta atenção. Às vezes anota algumas frases soltas no caderno. “E de repente fez-se a luz, e ela era...”. “O Romantismo surgiu como uma forma de...”. “Os Sofrimentos do Jovem Werther, condenado pelo público da época por...”.
Atrás delas, uma fileira de garotos bagunceiros, iludidos por acharem que não são os últimos da sala – o Sr. Tédio, agora, acaba de cutucar os nerds da primeira fila, gerando um bocejo bem vagaroso em um deles.
Luiza pisca os olhos, de cabeça baixa, olhando o espaço de ar acima da inscrição.
Bianca rói as unhas, depois repara se estragou o esmalte.
Mariana continua de braços cruzados. Acredita ter visto alguém passar pela porta, à direita. Ela vira o rosto, atenta, e o verde dos seus olhos escurece um pouco, mas ela só vê a parede do outro lado do corredor. Volta-se para a frente. O seu perfil de traços bem definidos, com um quê de adulto. Enquanto ela não vê, o flash de uma cabeça ruiva passa pelo vidro da porta, e logo some. Reaparece, e some novamente. Mariana se vira, a tempo de ver o topo de uma cabecinha, alguém aparentemente se esticando para alcançar o vidro, e os olhos se infiltrando na sala, em direção à menina. Ela o reconhece, e sorri para ele. Rapidamente o seu rosto se enche de luz, e a sua beleza realça. Mas ele não sorri de volta, e desaparece no corredor.
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