Os alquimistas estão chegando
Os alquimistas estão chegando...
Os dois homens instalaram-se cada um de um lado do terceiro. O primeiro, embora tivesse uma boca tão pequena que parecia deformada, foi o que passou a tarde inteira falando. Não parava nunca. O dono da casa, submisso, aceitava e abaixava a cabeça. O terceiro apenas contemplava as cenas, e fingia que tinha alguma utilidade. Talvez tivesse. Vai saber.
Agora, sabe-se lá por quê, estão os três olhando pela janela, um ao lado do outro. Os dois homens cruzaram aos mãos às costas, então o terceiro cruzou também. De vez em quando ele olha para os lados de soslaio, mas mal consegue ver os ombros dos outros, por ser tão mais baixo. Se os outros rissem ele riria também, pois até que a cena está engraçada. Aquelas caras com uma seriedade instalada a prego naquelas caras insossas. Mas eles não riem - ou pelo menos ele supõe que não.
Quisera ele entender o motivo daquilo. Passaram horas e horas revistando a casa, trocando coisas de lugar, ordenando tarefas absurdas e desviando de objetos inofensivos. À primeira vista, a coisa poderia ser um tanto ameaçadora. Depois, o inusitado superou a prudência e ele já não sabe mais em que dimensão reside e se realmente não devia ter aceitado a sugestado da sua ex-mulher e se internado definitivamente naquele hospício tão receptivo e limpinho que tinha ali perto. "Veja bem, querido", a voz de garça ressoava na mente dele, "pelo menos você não vai precisar lavar suas malditas roupas. Nem cozinhar nem comprar congelados, porque aqueles comprimidinhos que eles te dão, ah, no mundo da lua ninguém sente fome...".
A água continuava a correr escada abaixo. Diziam eles que era necessário para delimitar o espaço-tempo em que a sinuosidade se daria de forma inteiramente abjeta ou, inversamente propondo, em que a propulsão à resistência orgânica completaria pelo menos sete dos nove ciclos pretendidos. Perguntava-se se a apresentação que ele fizera da própria casa tinha definido a quantidade desses tais ciclos. Ele vinha, ainda intrigado, respondendo sobre o material de que eram feitas as janelas - "algumas delas serão levadas para análise, esperamos que o senhor não se importe..." -, sobre a freqüência do uso das torneiras - "não creio que isso seja uma torneira" -, demonstrando a elasticidade das cortinas - "mais para a direita, por favor...agora incline-se para a frente..." -, evitando esbarrar nos ladrilhos furiosamente indicados e tão ameaçadoramente assinalados - "uma panela sobre eles e o senhor não se esquecerá de que oferecem riscos"..
No segundo andar, os questionamentos prolongaram-se. Análises do material do reboco da parede indicaram que, ao contrário do que ele pensava, aquele não era o quarto. Melhor seria trocar a cama por uma banheira. Nos corredores, um surto impeliu-os a rasparem as paredes e contarem seguidas vezes, em três linguas diferentes, os níveis de tinta sucessivamente substituídos. O dono da casa assistia, com a cabeça pendendo, piscando um olho e tentando entender o processo, mas foi carregado logo para os outros cômodos.
Agora, a casa semi-destruída, a tarefa estava quase completa. Pela respiração ele parecia sentir um frêmito de dever cumprido percorrendo lascivamente as espinhas dos dois homens. Em vez de gelo, cubos de caldo de carne; para os temperos, o lugar seria o antigo armário guardado no sótão; nos cômodos pouco visitados, estes sim deveriam ter as lâmpadas potentes, devidamente retiradas dos outros.
Eles subitamente acordaram. Olharam-se, e moveram-se em direção à porta. O dono da casa temeu segui-los, apenas olhou para trás, vascilando entre o pé esquerdo ou o direito a avançarem pelo novo tapete dobrado em quatro. Eles continuaram seguindo e, antes de chegar à porta, estacaram, surpreendidos por algumas anotações perdidas sobre a mesa. Voltaram-se, inquisidoramente. O dono da casa aproximou-se. Tentou explicar: são apenas...coisas. Coisas que eu escrevo. Às vezes, assim...sem intenção nenhuma. O boca-deformada revidou com agressividade: já não tinha feito aquilo o suficiente? Pra que mais essas coisas sem sentido que ele produzia indefinidamente? O dono da casa tentou se defender, começou a explicar o título, estão chegando, estão chegando, chegando os alquimistas, olha que bacana... Mas o outro cochichou para o outro, enquanto escrevia a sentença final: deve ser mais uma frase qualquer que ele ouviu em algum lugar. Está perdido, perdido...
Os dois homens instalaram-se cada um de um lado do terceiro. O primeiro, embora tivesse uma boca tão pequena que parecia deformada, foi o que passou a tarde inteira falando. Não parava nunca. O dono da casa, submisso, aceitava e abaixava a cabeça. O terceiro apenas contemplava as cenas, e fingia que tinha alguma utilidade. Talvez tivesse. Vai saber.
Agora, sabe-se lá por quê, estão os três olhando pela janela, um ao lado do outro. Os dois homens cruzaram aos mãos às costas, então o terceiro cruzou também. De vez em quando ele olha para os lados de soslaio, mas mal consegue ver os ombros dos outros, por ser tão mais baixo. Se os outros rissem ele riria também, pois até que a cena está engraçada. Aquelas caras com uma seriedade instalada a prego naquelas caras insossas. Mas eles não riem - ou pelo menos ele supõe que não.
Quisera ele entender o motivo daquilo. Passaram horas e horas revistando a casa, trocando coisas de lugar, ordenando tarefas absurdas e desviando de objetos inofensivos. À primeira vista, a coisa poderia ser um tanto ameaçadora. Depois, o inusitado superou a prudência e ele já não sabe mais em que dimensão reside e se realmente não devia ter aceitado a sugestado da sua ex-mulher e se internado definitivamente naquele hospício tão receptivo e limpinho que tinha ali perto. "Veja bem, querido", a voz de garça ressoava na mente dele, "pelo menos você não vai precisar lavar suas malditas roupas. Nem cozinhar nem comprar congelados, porque aqueles comprimidinhos que eles te dão, ah, no mundo da lua ninguém sente fome...".
A água continuava a correr escada abaixo. Diziam eles que era necessário para delimitar o espaço-tempo em que a sinuosidade se daria de forma inteiramente abjeta ou, inversamente propondo, em que a propulsão à resistência orgânica completaria pelo menos sete dos nove ciclos pretendidos. Perguntava-se se a apresentação que ele fizera da própria casa tinha definido a quantidade desses tais ciclos. Ele vinha, ainda intrigado, respondendo sobre o material de que eram feitas as janelas - "algumas delas serão levadas para análise, esperamos que o senhor não se importe..." -, sobre a freqüência do uso das torneiras - "não creio que isso seja uma torneira" -, demonstrando a elasticidade das cortinas - "mais para a direita, por favor...agora incline-se para a frente..." -, evitando esbarrar nos ladrilhos furiosamente indicados e tão ameaçadoramente assinalados - "uma panela sobre eles e o senhor não se esquecerá de que oferecem riscos"..
No segundo andar, os questionamentos prolongaram-se. Análises do material do reboco da parede indicaram que, ao contrário do que ele pensava, aquele não era o quarto. Melhor seria trocar a cama por uma banheira. Nos corredores, um surto impeliu-os a rasparem as paredes e contarem seguidas vezes, em três linguas diferentes, os níveis de tinta sucessivamente substituídos. O dono da casa assistia, com a cabeça pendendo, piscando um olho e tentando entender o processo, mas foi carregado logo para os outros cômodos.
Agora, a casa semi-destruída, a tarefa estava quase completa. Pela respiração ele parecia sentir um frêmito de dever cumprido percorrendo lascivamente as espinhas dos dois homens. Em vez de gelo, cubos de caldo de carne; para os temperos, o lugar seria o antigo armário guardado no sótão; nos cômodos pouco visitados, estes sim deveriam ter as lâmpadas potentes, devidamente retiradas dos outros.
Eles subitamente acordaram. Olharam-se, e moveram-se em direção à porta. O dono da casa temeu segui-los, apenas olhou para trás, vascilando entre o pé esquerdo ou o direito a avançarem pelo novo tapete dobrado em quatro. Eles continuaram seguindo e, antes de chegar à porta, estacaram, surpreendidos por algumas anotações perdidas sobre a mesa. Voltaram-se, inquisidoramente. O dono da casa aproximou-se. Tentou explicar: são apenas...coisas. Coisas que eu escrevo. Às vezes, assim...sem intenção nenhuma. O boca-deformada revidou com agressividade: já não tinha feito aquilo o suficiente? Pra que mais essas coisas sem sentido que ele produzia indefinidamente? O dono da casa tentou se defender, começou a explicar o título, estão chegando, estão chegando, chegando os alquimistas, olha que bacana... Mas o outro cochichou para o outro, enquanto escrevia a sentença final: deve ser mais uma frase qualquer que ele ouviu em algum lugar. Está perdido, perdido...
2 Comments:
E os escafandristas virão explorar nossas casas!
By Anônimo, at domingo, março 05, 2006
"Eles são discretos e silenciosos
E moram bem longe dos homens..."
Tava andando pelo centro de Recife, na segunda, e começou a tocar essa música num camelô de cds piratas. Suas músicas me perseguem!
By Edson, at quarta-feira, março 08, 2006
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