|| Paralelos || segunda e última parte
Estava quente, mas não muito, e ele gastou uns bons segundos dando-se ao luxo de pensar sobre o tempo. Ontem estava bem mais quente... – e passou pela farmácia; ...semana passada, que estranho, choveu todos os dias... – cruzou dois prédios; ...quem sabe se amanhã não dá para pegar uma praia?... – parou no sinal; ...vamos ver....se a Elisa topar, vou logo de manhã com ela... – e seguiu o caminho. Só depois de alguns quarteirões ele se deu conta de que seria melhor avisar que não voltaria em casa a tempo. O celular estava descarregado; recorreu ao velho telefone público – havia um alguns metros adiante, podia ver. Quem atendeu foi a irmã: Elisa, avisa aos meus pais que não vai dar pra ir com vocês. Tive que resolver algumas coisas. Tá bom? Do outro lado da linha, um grunhido ou coisa parecida. Ele chamou a irmã duas vezes, temendo não estar ouvindo por causa do barulho do trânsito. Depois de uns instantes, ela disse, numa voz pouco amistosa: Eles vão ficar irados com você. Ele sabia. Mas nem se importou. “Diga a eles isso que te falei. Quando eu chegar, explico melhor.”
*
Era uma praça mais ou menos escondida, pouco freqüentada e enfurnada entre duas pequenas ruas e uma esquina com jeito de depósito de lixo. A praça, em si, não tinha esse aspecto, mas era tão pequena que parecia ter sido criada desajeitadamente pelos próprios moradores. Cada um trouxera um balanço, um escorrega, um pouco de areia para as crianças brincarem... e pronto. Dava para imaginar isso. Devia fazer mais de dez minutos que ela estava ali sentada, sem motivo algum, exceto pelo fato de que não queria estar no próprio casamento. Os gritinhos das poucas crianças ali presentes soavam débeis e em vão. Como ser feliz num lugar daquele tão pouco atraente? Por que se animar com brinquedos com cara de tristes? Ela se perguntava isso, e condenava a si própria, pois se fosse criança teria as respostas mais simples, mais claras e mais fáceis do que as que tinha no momento. Abaixou a cabeça, suspirando, e notou que a barra do seu vestido branco estava sujando de lama na areia suja da praça decadente. A lama de um lugar em que ela não deveria estar, inundando o vestido preparado durante meses, com euforia por parte de todos, menos dela. Um marrom tomando conta do tecido nobre, fino e caro. Teve uma sensação de que estava enjoada, um sufocamento não muito forte na garganta. Passava, sempre passava.
*
“Eles vão ficar irados com você”, ora essa. Que bobagem. Elisa devia saber que a ira dos pais era tão forte quanto a ousadia que incutira nos dois filhos. Que, por mais contrariados que estivessem, nunca tinham força suficiente para causar medo, respeito, ou qualquer outro sentimento necessário a autoridades. Elisa devia saber, mas se ele mesmo não sabia, como exigir isso dela? Talvez ela fosse menos covarde que ele em muitas coisas. Talvez ela não precisasse de coragem, pois dava-se bem em praticamente tudo quanto fazia: era bonita, estudiosa, os amigos, parentes e vizinhos achavam-na um doce de menina. Talvez estivesse reservado a ele o fardo de ter que se esforçar muito mais por cada coisa. Não que se sentisse mal por ser, à primeira vista, inferior a ela. Ela que salvasse o destino da família. Ela que ensinasse a ele novas maneiras de encarar o mundo. Um dia perguntaria a ela, enquanto assistissem televisão, como conseguia ser assim tão... satisfeita. E daria a ela dois dias para pensar em uma resposta. Sim, faria isso. Ele saiu da loja com uma garrafa pequena de Coca-Cola na mão esquerda, e uma lata de cerveja preta na direita. Pagou completando com moedas, apoiou as bebidas no balcão, abriu as duas, e continuou pela rua alternando os dois líquidos escuros.
*
Ela continuava na praça, alheia às amenidades do mundo. Já tinha feito e refeito todas as possibilidades de conseqüências que aquilo lhe daria; como iriam reagir, como ela seria olhada por um bom tempo. Mas as linhas se cruzavam, as situações hipotéticas se confundiam, repetiam, voltavam e se misturavam umas nas outras. Reparou que não estava mais sozinha. A vista periférica localizou a seu lado uma criança. Continuou sem olhá-la, não identificando se era menino ou menina. Mas a insistência do olhar que ela sentia no rosto venceu: virou-se, e deparou-se com uma menina de olhos grandes bem abertos, esperando alguma coisa. “Oi”, começou. E a menina, mais do que prontamente, respondeu um “oi” com voz de quem acabou de comer doce. Ela tentou identificar quantos anos tinha a menina, mas não fazia idéia. Seu pouco interesse por crianças podia levá-la a defiinir 4, 5, 8, 10 anos...não mais que dez, mas isso não ajudava muito. Veio, então, o que ela esperava: “Você vai casar?”. “Não, não vou.”, respondeu. Mas a menina continuou olhando pra ela, sem mudar a expressão, como se não tivesse entendido. “Eu ia...mas não vou mais”. “Por quê?”, rebateu a menina. “Porque...porque eu não quero mais. Ou nunca quis, não sei. Porque pra muitas meninas o casamento pode ser um sonho, mas pra mim não é. Tentei fazer com que fosse... mas...não consegui”. A menina continuava olhando, esperando uma resposta. O “por quê” se exibia entre as duas, brincando de mímica ou outra bobagem, embaçando a visão. A menina nem entendeu que a moça com o vestido de noiva teve realmente impressão de ter respondido a pergunta em voz alta.
*
O lutador da esquerda era moreno, musculoso, com uma faixa na cabeça e tinha três armas especiais. O da direita, parecia uma mistura entre um rosto de cachorro e o corpo de um urso. Não tinha faixa, mas uma faca na mão, e dois poderes especiais. Ele escolheu ser o da esquerda. E perdeu. Era de se esperar, depois de anos sem jogar aquilo. Na época do colégio, às vezes matava aula pra ir jogar no shopping, quase sempre naquele mesmo, que era o mais perto. Não tinha muitas opções, mas dava pra voltar a tempo e fingir que estiveram por lá o tempo todo. Agora ali estava um grupinho de alunos de uma escola ali perto. De uniforme, falando alto sobre alguma coisa sem importância, tomando refrigerante e comprando fichas para os jogos de luta. Quanto tempo havia se passado desde então? E quanto ele achava que seria necessário para não mais se identificar com esse tipo de visão?
*
A menina foi embora, deixando-a sozinha com seu vestido manchado de lama. Poderia tentar levantar dali, mas faltava o motivo. Mesmo que uma praça decadente com várias crianças não fosse lá o ambiente ideal para desfazer a mente da lembrança de um ex-futuro-casamento. Na direção da sua visão mesmo estava uma moça, bem nova, rodeada por três filhos. Daquelas que bem poderiam ter largado o colégio por causa de uma gravidez inconveniente. Daquelas que se comoveram com a notícia do noivado, meses antes. A moça por um instante olhou-a com curiosidade, como era de se esperar. Ela levantou, tropeçou, olhou se vinha carro, e fugiu a passos lentos.
*
Ele comprou outra Coca-Cola, e continuou andando, vendo que começava a anoitecer. Nenhuma vontade de voltar para casa. Nenhuma vontade de fazer coisa alguma. Vontade de estar exatamente ali, anônimo entre o trânsito e as luzes; ou talvez em outro lugar, não anônimo, sob as luzes. Mais um pouco à frente, um ruído, um estrondo. As pessoas olharam todas na mesma direção, algumas voltaram para saber o que era, uma aglomeração se formou. Ele seguiu o fluxo, também curioso, e entre os outros viu um rapaz caído da moto, sendo ajudado a levantar. Mas ele parecia ter quebrado a perna ou algo assim, pois não ficava de pé. Assustou-se: o rapaz da moto parecia um amigo que ele tinha desde muito tempo. Aproximou-se mais, para ter certeza de que não era. Deu uma volta, para verificar o rosto. Realmente não era. Ele saiu do foco da multidão e continuou seu caminho.
*
Ela ficou parada ainda entre os carros, imóvel e assustada, incapaz de responder alguma coisa. Você está bem?, perguntavam. Ela achava que sim, pelo menos fisicamente. A moto passou apenas de raspão. O sinal estava fechado? Estava... mas não respondeu com muita certeza. Um absurdo, um absurdo, poderia ter ferido a moça. A moça de vestido de noiva. Eles se cansariam dela em alguns minutos, e iriam se ocupar do espetáculo do ferido no chão. Estava anoitecendo. Ela poderia ter ido parar no hospital, levando cinco pontos por causa da fuga do casamento. Seria patético. Se fosse um carro, então... talvez até pior. O trânsito parara, e ela ficou um tempo ali, a invejar a confusão, tão nítida, tão objetiva, tão diferente da dela.
*
Ele estava em casa, e o recebeu com surpresa e simpatia. No início achou estranho o fato do acidente, e de o rapaz parecer-se tanto com ele. Depois riu. Ele gostava disso do amigo de conseguir fazê-lo achar tudo mais leve do que poderia ser. Antigamente, na época de colégio, ele se perguntava quando essa mania ia passar, de levar tudo tão a sério, e mesmo assim não conseguir tornar mais sérias suas próprias resoluções. Elas se desfaziam alguns dias depois, senão algumas horas. Agora, via que talvez devesse ter se perguntado se algum dia essa mania ia parar, não quando. Mesmo agora, em que se permitia uma exceção, tentava arrancar simbolismos em todas as esquinas, todas as banalidades que cruzaram seu caminho. Refez mentalmente seu percurso desconexo do dia, e satisfez-se em conseguir rever as horas de uma forma mais simples do que vira no exato momento. Ele ia pensando nisso e ouvindo o amigo comentar sobre seu trabalho, sua namorada, seu carro novo, enfim, fatos que se comentam. Pensou em comentar algo além dessas coisas, mas não viu brecha nem ocasião, e continuou apenas a discussão sobre futebol.
*
Havia algo de hipnótico naqueles televisores, lado a lado, exibindo a mesma imagem, dez, vinte, trinta vezes. A cena da novela se repetia; o personagem se virava aqui, e a sua virada era repetida em todos os outros aparelhos ao mesmo tempo. Mudava-se a cena, e todas as luzes transformavam-se em luzes de outras cores. Estava cansada; principalmente de andar com aquele vestido. Alguma hora teria que voltar; e decidiu fazê-lo naquele momento. Mas aquela hipnose continuava, e continuava... mesmo sem som. Talvez alguém estivesse por perto achando a cena inusitada, mas ela já não se importava. Abandonou as telas à sua frente, respirou fundo, encarou o piso da loja. Depois seguiu entre as prateleiras, que exibiam torradeiras, cafeteiras, fornos elétricos, liquidificadores.
*
De diferença da hora em que ele deveria ter entrado em casa, só o tom do céu, porque as ruas continuavam tão vazias quanto. Sentiu, pela primeira vez, naquele dia, a perna cansada. Não lembrava se andara muito ou pouco; poderia pensar que havia sido muito.
*
Suja, cansada, os cabelos desfeitos, péssima aparência. Principalmente, a expressão abatida, mas que de forma alguma amenizaria as agressões que receberia, mesmo implicitamente. Continuava caminhando no mesmo ritmo, apesar do cansaço. Sentiu, pela primeira vez, arrependimento, pois ainda o amava, e não pôde evitar chorar, enquanto caminhava de volta para casa, os olhos ainda fitando o fim da rua, sem facilitar o caminho das lágrimas. Fizera tudo errado. Tudo, certeza disso. E ali estava o fim, de suas abreviações, de suas tentativas frustradas, de suas insitências mal sucedidas. Não era assim que deveria ser. E por que deveria ser de outra forma? Ela nunca saberia conduzir-se da forma correta. Ainda muitas vezes realizaria um percurso como o daquela noite. Tantas vezes quanto as repetições dos televisores na loja de eletrodomésticos, tanto que se cansaria, e, ainda assim, talvez nunca aprendesse como desejava.
*
Ele entrou despreocupado, achando que não haveria ninguém em casa. Mas estavam todos lá, em suas atividades cotidianas. Parecia que tinham acabado de jantar. A mãe só deu pela presença dele algum tempo depois, e não pareceu furiosa nem nada. Ele jogou as chaves sobre o armário, perguntou o que tinha acontecido. Elisa respondeu, sem tirar os olhos das próprias unhas, que não tinha havido casamento, afinal. E por que não?, ele insistiu. Não tinha noiva. Como assim não tinha noiva? A noiva não apareceu, ora. Por quê?? A mãe não sabia, tampouco o pai, nem Elisa. Ninguém sabia, aliás, pelo que pareceu. Foi bem constrangedor, comentou Elisa. Estranho, disse o pai. E comentaram mais algumas coisas durante a noite, enquanto assistiam ao jornal, e revezavam com outros assuntos.
*
A luz estava acesa, aliás, as luzes de todos os cômodos, dava pra ver pelo lado de fora. Viu algumas silhuetas passarem pela janela; e previu o ambiente pesado, pelo silêncio que se mantinha enquanto ela se aproximava da entrada. Ao contrário do que imaginava, não teve medo algum, e a tristeza passara. Quando se lembrou dele, sentiu novamente aquela sensação ruim, mas passou bem rápido. Sempre passava.
***
*
Era uma praça mais ou menos escondida, pouco freqüentada e enfurnada entre duas pequenas ruas e uma esquina com jeito de depósito de lixo. A praça, em si, não tinha esse aspecto, mas era tão pequena que parecia ter sido criada desajeitadamente pelos próprios moradores. Cada um trouxera um balanço, um escorrega, um pouco de areia para as crianças brincarem... e pronto. Dava para imaginar isso. Devia fazer mais de dez minutos que ela estava ali sentada, sem motivo algum, exceto pelo fato de que não queria estar no próprio casamento. Os gritinhos das poucas crianças ali presentes soavam débeis e em vão. Como ser feliz num lugar daquele tão pouco atraente? Por que se animar com brinquedos com cara de tristes? Ela se perguntava isso, e condenava a si própria, pois se fosse criança teria as respostas mais simples, mais claras e mais fáceis do que as que tinha no momento. Abaixou a cabeça, suspirando, e notou que a barra do seu vestido branco estava sujando de lama na areia suja da praça decadente. A lama de um lugar em que ela não deveria estar, inundando o vestido preparado durante meses, com euforia por parte de todos, menos dela. Um marrom tomando conta do tecido nobre, fino e caro. Teve uma sensação de que estava enjoada, um sufocamento não muito forte na garganta. Passava, sempre passava.
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“Eles vão ficar irados com você”, ora essa. Que bobagem. Elisa devia saber que a ira dos pais era tão forte quanto a ousadia que incutira nos dois filhos. Que, por mais contrariados que estivessem, nunca tinham força suficiente para causar medo, respeito, ou qualquer outro sentimento necessário a autoridades. Elisa devia saber, mas se ele mesmo não sabia, como exigir isso dela? Talvez ela fosse menos covarde que ele em muitas coisas. Talvez ela não precisasse de coragem, pois dava-se bem em praticamente tudo quanto fazia: era bonita, estudiosa, os amigos, parentes e vizinhos achavam-na um doce de menina. Talvez estivesse reservado a ele o fardo de ter que se esforçar muito mais por cada coisa. Não que se sentisse mal por ser, à primeira vista, inferior a ela. Ela que salvasse o destino da família. Ela que ensinasse a ele novas maneiras de encarar o mundo. Um dia perguntaria a ela, enquanto assistissem televisão, como conseguia ser assim tão... satisfeita. E daria a ela dois dias para pensar em uma resposta. Sim, faria isso. Ele saiu da loja com uma garrafa pequena de Coca-Cola na mão esquerda, e uma lata de cerveja preta na direita. Pagou completando com moedas, apoiou as bebidas no balcão, abriu as duas, e continuou pela rua alternando os dois líquidos escuros.
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Ela continuava na praça, alheia às amenidades do mundo. Já tinha feito e refeito todas as possibilidades de conseqüências que aquilo lhe daria; como iriam reagir, como ela seria olhada por um bom tempo. Mas as linhas se cruzavam, as situações hipotéticas se confundiam, repetiam, voltavam e se misturavam umas nas outras. Reparou que não estava mais sozinha. A vista periférica localizou a seu lado uma criança. Continuou sem olhá-la, não identificando se era menino ou menina. Mas a insistência do olhar que ela sentia no rosto venceu: virou-se, e deparou-se com uma menina de olhos grandes bem abertos, esperando alguma coisa. “Oi”, começou. E a menina, mais do que prontamente, respondeu um “oi” com voz de quem acabou de comer doce. Ela tentou identificar quantos anos tinha a menina, mas não fazia idéia. Seu pouco interesse por crianças podia levá-la a defiinir 4, 5, 8, 10 anos...não mais que dez, mas isso não ajudava muito. Veio, então, o que ela esperava: “Você vai casar?”. “Não, não vou.”, respondeu. Mas a menina continuou olhando pra ela, sem mudar a expressão, como se não tivesse entendido. “Eu ia...mas não vou mais”. “Por quê?”, rebateu a menina. “Porque...porque eu não quero mais. Ou nunca quis, não sei. Porque pra muitas meninas o casamento pode ser um sonho, mas pra mim não é. Tentei fazer com que fosse... mas...não consegui”. A menina continuava olhando, esperando uma resposta. O “por quê” se exibia entre as duas, brincando de mímica ou outra bobagem, embaçando a visão. A menina nem entendeu que a moça com o vestido de noiva teve realmente impressão de ter respondido a pergunta em voz alta.
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O lutador da esquerda era moreno, musculoso, com uma faixa na cabeça e tinha três armas especiais. O da direita, parecia uma mistura entre um rosto de cachorro e o corpo de um urso. Não tinha faixa, mas uma faca na mão, e dois poderes especiais. Ele escolheu ser o da esquerda. E perdeu. Era de se esperar, depois de anos sem jogar aquilo. Na época do colégio, às vezes matava aula pra ir jogar no shopping, quase sempre naquele mesmo, que era o mais perto. Não tinha muitas opções, mas dava pra voltar a tempo e fingir que estiveram por lá o tempo todo. Agora ali estava um grupinho de alunos de uma escola ali perto. De uniforme, falando alto sobre alguma coisa sem importância, tomando refrigerante e comprando fichas para os jogos de luta. Quanto tempo havia se passado desde então? E quanto ele achava que seria necessário para não mais se identificar com esse tipo de visão?
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A menina foi embora, deixando-a sozinha com seu vestido manchado de lama. Poderia tentar levantar dali, mas faltava o motivo. Mesmo que uma praça decadente com várias crianças não fosse lá o ambiente ideal para desfazer a mente da lembrança de um ex-futuro-casamento. Na direção da sua visão mesmo estava uma moça, bem nova, rodeada por três filhos. Daquelas que bem poderiam ter largado o colégio por causa de uma gravidez inconveniente. Daquelas que se comoveram com a notícia do noivado, meses antes. A moça por um instante olhou-a com curiosidade, como era de se esperar. Ela levantou, tropeçou, olhou se vinha carro, e fugiu a passos lentos.
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Ele comprou outra Coca-Cola, e continuou andando, vendo que começava a anoitecer. Nenhuma vontade de voltar para casa. Nenhuma vontade de fazer coisa alguma. Vontade de estar exatamente ali, anônimo entre o trânsito e as luzes; ou talvez em outro lugar, não anônimo, sob as luzes. Mais um pouco à frente, um ruído, um estrondo. As pessoas olharam todas na mesma direção, algumas voltaram para saber o que era, uma aglomeração se formou. Ele seguiu o fluxo, também curioso, e entre os outros viu um rapaz caído da moto, sendo ajudado a levantar. Mas ele parecia ter quebrado a perna ou algo assim, pois não ficava de pé. Assustou-se: o rapaz da moto parecia um amigo que ele tinha desde muito tempo. Aproximou-se mais, para ter certeza de que não era. Deu uma volta, para verificar o rosto. Realmente não era. Ele saiu do foco da multidão e continuou seu caminho.
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Ela ficou parada ainda entre os carros, imóvel e assustada, incapaz de responder alguma coisa. Você está bem?, perguntavam. Ela achava que sim, pelo menos fisicamente. A moto passou apenas de raspão. O sinal estava fechado? Estava... mas não respondeu com muita certeza. Um absurdo, um absurdo, poderia ter ferido a moça. A moça de vestido de noiva. Eles se cansariam dela em alguns minutos, e iriam se ocupar do espetáculo do ferido no chão. Estava anoitecendo. Ela poderia ter ido parar no hospital, levando cinco pontos por causa da fuga do casamento. Seria patético. Se fosse um carro, então... talvez até pior. O trânsito parara, e ela ficou um tempo ali, a invejar a confusão, tão nítida, tão objetiva, tão diferente da dela.
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Ele estava em casa, e o recebeu com surpresa e simpatia. No início achou estranho o fato do acidente, e de o rapaz parecer-se tanto com ele. Depois riu. Ele gostava disso do amigo de conseguir fazê-lo achar tudo mais leve do que poderia ser. Antigamente, na época de colégio, ele se perguntava quando essa mania ia passar, de levar tudo tão a sério, e mesmo assim não conseguir tornar mais sérias suas próprias resoluções. Elas se desfaziam alguns dias depois, senão algumas horas. Agora, via que talvez devesse ter se perguntado se algum dia essa mania ia parar, não quando. Mesmo agora, em que se permitia uma exceção, tentava arrancar simbolismos em todas as esquinas, todas as banalidades que cruzaram seu caminho. Refez mentalmente seu percurso desconexo do dia, e satisfez-se em conseguir rever as horas de uma forma mais simples do que vira no exato momento. Ele ia pensando nisso e ouvindo o amigo comentar sobre seu trabalho, sua namorada, seu carro novo, enfim, fatos que se comentam. Pensou em comentar algo além dessas coisas, mas não viu brecha nem ocasião, e continuou apenas a discussão sobre futebol.
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Havia algo de hipnótico naqueles televisores, lado a lado, exibindo a mesma imagem, dez, vinte, trinta vezes. A cena da novela se repetia; o personagem se virava aqui, e a sua virada era repetida em todos os outros aparelhos ao mesmo tempo. Mudava-se a cena, e todas as luzes transformavam-se em luzes de outras cores. Estava cansada; principalmente de andar com aquele vestido. Alguma hora teria que voltar; e decidiu fazê-lo naquele momento. Mas aquela hipnose continuava, e continuava... mesmo sem som. Talvez alguém estivesse por perto achando a cena inusitada, mas ela já não se importava. Abandonou as telas à sua frente, respirou fundo, encarou o piso da loja. Depois seguiu entre as prateleiras, que exibiam torradeiras, cafeteiras, fornos elétricos, liquidificadores.
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De diferença da hora em que ele deveria ter entrado em casa, só o tom do céu, porque as ruas continuavam tão vazias quanto. Sentiu, pela primeira vez, naquele dia, a perna cansada. Não lembrava se andara muito ou pouco; poderia pensar que havia sido muito.
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Suja, cansada, os cabelos desfeitos, péssima aparência. Principalmente, a expressão abatida, mas que de forma alguma amenizaria as agressões que receberia, mesmo implicitamente. Continuava caminhando no mesmo ritmo, apesar do cansaço. Sentiu, pela primeira vez, arrependimento, pois ainda o amava, e não pôde evitar chorar, enquanto caminhava de volta para casa, os olhos ainda fitando o fim da rua, sem facilitar o caminho das lágrimas. Fizera tudo errado. Tudo, certeza disso. E ali estava o fim, de suas abreviações, de suas tentativas frustradas, de suas insitências mal sucedidas. Não era assim que deveria ser. E por que deveria ser de outra forma? Ela nunca saberia conduzir-se da forma correta. Ainda muitas vezes realizaria um percurso como o daquela noite. Tantas vezes quanto as repetições dos televisores na loja de eletrodomésticos, tanto que se cansaria, e, ainda assim, talvez nunca aprendesse como desejava.
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Ele entrou despreocupado, achando que não haveria ninguém em casa. Mas estavam todos lá, em suas atividades cotidianas. Parecia que tinham acabado de jantar. A mãe só deu pela presença dele algum tempo depois, e não pareceu furiosa nem nada. Ele jogou as chaves sobre o armário, perguntou o que tinha acontecido. Elisa respondeu, sem tirar os olhos das próprias unhas, que não tinha havido casamento, afinal. E por que não?, ele insistiu. Não tinha noiva. Como assim não tinha noiva? A noiva não apareceu, ora. Por quê?? A mãe não sabia, tampouco o pai, nem Elisa. Ninguém sabia, aliás, pelo que pareceu. Foi bem constrangedor, comentou Elisa. Estranho, disse o pai. E comentaram mais algumas coisas durante a noite, enquanto assistiam ao jornal, e revezavam com outros assuntos.
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A luz estava acesa, aliás, as luzes de todos os cômodos, dava pra ver pelo lado de fora. Viu algumas silhuetas passarem pela janela; e previu o ambiente pesado, pelo silêncio que se mantinha enquanto ela se aproximava da entrada. Ao contrário do que imaginava, não teve medo algum, e a tristeza passara. Quando se lembrou dele, sentiu novamente aquela sensação ruim, mas passou bem rápido. Sempre passava.
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