Image hosting by Photobucket

30.9.05

Interseção

Conheceram-se em uma interseção de contos.
Ela era uma jovem senhora dos anos 40 batendo os tapetes do lado de fora de casa. Uma personagem secundária no meio da linha narrativa do mesmo escritor que a história dele.
Ele era um homem dos anos 90, deitado na cama, deprimido e reflexivo.
O escritor parara de pensar nele para continuar a história anterior, que era a dela, e acabou se confundindo. Uma cena se sobrepôs à outra.
Ela o acertou com seu tapete.
Ele disse: "Ai."
Ela lhe pediu desculpas, explicou a situação, e ele se comoveu com o inusitado. Futuramente, contariam sua história de amor de como se apaixonaram sem nem existirem.
Mas, droga, eles faziam parte de histórias separadas que sequer chegaram a ser contadas.
Desapareceram sem nem saberem o nome um do outro.

26.9.05

Desequilibrei

Desequilibrei. Só isso. Quando tentei olhar lá embaixo. E o vento passou rápido demais por mim. E a velocidade me assustou. E nem entendi muito bem o que tinha acontecido. Simplesmente, desequilíbrio.

Talvez, se soubesse, não teria ido lá olhar. Não teria me afastado dos outros. Logo eu, que sempre fiz tudo como mandavam. Se soubesse, não teria subido. Não chegaria perto. Não me inclinaria tanto.

Mas era todo aquele campo, aquela imensidão, aquele todo-dia, e um desse todo-dia parecia igual demais. Nunca, nunca isso me incomodou. Nem naquela hora, mas... Tentei fugir um pouco; acho que tentei ir apenas por ir. Aquele lugar sempre me atraiu, vovó sempre dizia que não devíamos chegar perto, e eu nunca nem pensei em fazer isso. Mas algumas vezes, sem que eu me desse conta, virava e olhava, deixava os animais por alguns segundos de lado. Depois, esquecia e ia embora. E continuava. Sempre, sempre continuava.

E aquele campo, que sempre foi a minha casa... todo aquele verde, debaixo de tanto céu, debaixo de tanto, tanto céu...

Quando olhei...era um abismo, e meus olhos se abriram mais. E o ar parou debaixo do meu nariz, e eu não senti minhas mãos segurando no galho. Depois olhei, estava firme. Não sei, acho que tive medo, tentei voltar, mas continuei ali, continuei olhando. E alguma coisa no sentimento do todo-dia não estava mais lá, e a falta me deixou tonta. Os pés estavam firmes, tenho certeza, por isso não sei; por isso não entendo. Desequilibrei, e foi isso. Tudo lá embaixo, parecia bem perto, embora muito longe.

Eu desequilibrei. Não me senti mais. Nem cheguei a sentir o baque.

25.9.05

Sob as luzes do tablado

- Há quanto tempo está aqui?
- Não muito. Duas ou três horas, não lembro bem.
- Está acordado?
- Parece que sim. Mas não fala nem se move.
- Hm.
- Disseram que a luz daqui o está afetando. E que você saberia o que fazer.
- A luz? - e o homem olhou a sua volta - Não podemos mexer na iluminação.
- Não podemos? Deve ser por isso que os holofotes estão travados. Já tentamos desligá-los antes...
- Desculpe, mas o que você disse de a luz o estar afetando?
- Não reparou? Está perdendo cabelo. Quando o achamos creio que tinha quase o dobro do volume que tem agora. Olhe no chão. Cai como folha seca.

O homem aproximou-se do corpo imóvel. Seus olhos estavam semi-abertos, mas sem expressão. Ao redor da cabeça, os fios de cabelo aglomeravam-se.

- Parece que não é só isso...
- O que mais há?

O lado do corpo que estava sobre a madeira do tablado do teatro: repleto de queimaduras.

- E não sei se ele sente a dor.
- Não parece sentir coisa alguma...
- Daqui a quanto tempo as portas serão abertas?
- Exatamente vinte e um minutos. É noite de estréia. Já há fila na porta - e o homem que levara o outro até lá assumiu um tom nitidamente nervoso, esperando instruções sobre como agir.
- Bom, traga-me um café.
- Como?
- Café.
- ...
- Tem café aqui, não tem?
- Sim, claro... Bem... eu já volto.

A sós com o corpo sobre o tablado, o homem permaneceu a observá-lo por alguns segundos. Nada mudava. O teatro, gigantesco, estava deserto, mas dali a 19 minutos todas as poltronas estariam ocupadas, com caras ansiosas e absortas em qualquer coisa que lhes aparecesse sob a ribalta. A fila lá fora, apesar de formada, não se fazia perceber, nenhum ruído vazava pelo sistema acústico, para dentro do teatro. Assim, o homem permanecia em silêncio, imóvel como o outro. Até que se abaixou lentamente, a observar o corpo sobre a madeira.

O homem ali deitado mexeu-se devagar. Abriu os olhos de vez, preguiçosamente, e olhou na direção daqueles que o observavam. Sorriu. O homem sorriu também.

- Já pode ir.

O homem deitado suspirou. Piscou. Respirou mais forte. Espreguiçou. Só então lançou um olhar curioso àquele sentado ao seu lado. Mas ele se limitou a indicar-lhe o caminho da saída.

- Não precisa explicar nada. Melhor assim. E melhor que você não saiba também. Apenas vá embora. Certo?

E o homem levantou, calmamente, já sem nenhum indício de queimadura. Olhou os fios de cabelo no chão, mas pareceu indiferente. Caminhou meio trôpego, descendo as escadas, e só então as luzes, antes travadas, apagaram-se.

23.9.05

Uma Gota de Luz

Um fiapo de sol, uma luz aguada, intrusa no meio de tudo aquilo. Um pequeno instante de claridade, acesso de visão nítida que estremeceu o espírito - a esperança perturba. Agarrou-se a ele, quis prendê-lo, mas a luz não é matéria física e não pode ser mantida. Surgira antes que esperasse; havia se preparado tanto tempo, e agora que as células finalmente recebiam o fio de luz, ele se esvanecia, sem que se percebesse. A consciência abandonou-se em meio ao desejo, e o brilho refletido permaneceu memorizado na retina, como que ainda real, vivo, como que entre suas mãos.

E caminhou entre a escuridão como se visse tudo, como se agora não precisasse de mais nada, e a ilusão machucou seu corpo, fez esbarrar em tudo quanto pudesse ferir. Eram feridas do corpo, eram feridas da alma, e tudo podia ser escondido desde que ainda se acreditasse que aquele raio continuava atravessando o escuro. Por alguns instantes percebeu, mas não quis adequar-se e voltar à penumbra. Embora continuasse lá, tão presente quanto antes. A lembrança viva acossava o espírito, impedia que retornasse à normalidade acostumada. A recusa tornou-se incômoda, mas necessária, e quando se forçou a ser aceita, teve que admitir que a memória não era em vão, e que, assim como os cegos, os sentidos haviam se aguçado. De alguma forma, algo mais se desenvolvera, e não se podia negar.

Manteve-se na escuridão, embora não fosse a mesma diante de seus olhos.

17.9.05

Da perfeição

Às vezes, deitada, a sensação de relaxamento é tão grande que o corpo desaparece debaixo dos olhos fechados. Fica só a sensação de não querer recuperar o movimento das pernas, dos braços, das mãos, sobra só o contato da cabeça com o travesseiro ou o braço da poltrona. Nesse momento a sensação é a mais desejável: não ter um corpo para cuidar, não ter o que pensar, não ter que levantar, não ter que viver.

Quisera eu nunca ter adquirido essas pretensões, essas ambições, essas insistências. Só assim eu me contentaria em começar a dieta às segundas-feiras, constatar o aumento do preço do arroz e feijão, reclamar do presidente e votar nele na eleição seguinte. Ou entraria em um concurso público qualquer, e voltaria todo dia para casa satisfeita em ter um marido e uma novela me esperando na sala. Nascer, engatinhar, crescer, ir à Disney, reproduzir, pedir netos, morrer.

A vida é perfeita quando se admite a inutilidade de tentar ser melhor que isso.

O monstro da lagoa comeu meu ursinho

Mamãe, o monstro da lagoa comeu meu ursinho de pelúcia. Eu fiz que nem você mandou, tentei fazer amizade com ele, mas acho que ele não gostou de mim. Ele gostou do meu ursinho. Os monstros da lagoa comem as pessoas quando gostam delas, mãe? O papai disse que você é insana. O que é insana? O papai escondeu o dicionário. E ele disse que vai comprar um ursinho novo pra mim. Eu não quero não. Vem me buscar, mãe, o papai é muito chato. Tenta conversar com o monstro da lagoa pra ver se ele devolve meu ursinho...

Pedro