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29.10.05

(Sem título)

Hoje é o dia de tomar antibiótico durante a partida de basquete. Portanto, não sejam caridosos comigo, não sejam gentis. Tratem de me dar motivo para eu me manter ranzinza. Alcançar a terra prometida é o que de mais chato pode existir. Um rosto sem defeitos é inexpressivo. Mantenham meu humor instável, provoquem as ironias, ou vou esquecer as figuras de linguagem. Que história é essa de que as coisas melhoraram a tal ponto que já não é possível se lamentar nas páginas do word? Eu tentei tanto... pra isso? Erasmo tinha razão: tudo em vão, nada de concreto existe na pureza, na bondade, na razão... e eu acrescento: na felicidade. A loucura se diluiu nesse pozinho revestido de um vermelho gelatinoso, eu nem tenho medo de tomar. Nada de alucinógeno, mas a partida vai começar, e eu tenho que comprar trident. Cansei de chocolates, saladas saudáveis ou bolo de passas. Vamos devorar as células sensíveis, vamos torcer para a derrota do time da casa. Oh, desculpe, acho que acabaram de pisar no meu pé. As almas caridosas retornaram do céu.

22.10.05

A menina da saia amarela

A menina da saia amarela surge espontaneamente, uma visão repentina em meio ao aglomerado da saída do metrô.

Ela se destaca discretamente entre outras meninas de outras saias, entre os meninos, os homens, as mulheres, os velhos e as velhas, as crianças e as paredes.

A menina da saia amarela caminha indiferente. Não olha a sua volta. Sabe aonde vai, esquece o caminho que percorre.

A menina da saia amarela está nos corredores do subsolo, e em breve alcançará a rua.

Ela é observada.

Mas se observa, não demonstra.

Ela apenas transmite, não lembranças ou evocações de outras meninas, ela transmite em si uma beleza cotidiana.

Ela conta calorias? Frustra-se com um rasgo na blusa? Deseja ser uma grande advogada?

Não importa. Ela se limita à sua imagem, e transpira a banalidade que não deve ser desprezada.

A menina da saia amarela vestiu amarelo apenas porque quis. Porque estava disponível em seu armário. Ela talvez nem goste tanto assim da cor.

A menina da saia amarela caminha, e não muito, pois o corredor não é muito longo.

Ela se torna cada vez menor e menos nítida em meio aos outros.

A menina da saia amarela toma a escada rolante, abandona as paredes do subsolo.

Retorna à dimensão dos invisíveis na cidade.

21.10.05

Inventário

Perdi minha inocência aos 14 anos.
Meus caminhos aos 19.
Meu melhor emprego aos 28.
Perdi um anel de noivado aos 31.
A fé aos 40.
Os cabelos aos 52.
E continuo perdido até hoje, nessa cidade tumultuada e voraz, onde só se respeitam as perdas que se encerram sob as lápides de mármore.

Os Desejos Esquecidos

Eu quero a epígrafe mais bela, mais precisa, com letras em itálico e duas linhas preenchidas com atordoamento.

Quero uma declaração de amor que arraste consigo a garganta que a proferir. Uma declaração tão verdadeira que se desconfie, que não exija resposta. Leve como ice tea.

Quero a música mais perfeita, com direito a violão e choro contido. E, sim, que soe tão bonita como o nome Lou Reed.

Quero um telefonema inesperado, carregado de uma voz que soe parada no tempo. Mas pode também carregar silêncio (aquela palavra de que os poetas tanto gostam).

Eu quero, claro, uma palavra perfeita, que sirva pra anotar em qualquer lugar, a qualquer hora. Eu gosto de várias delas, mas existirá, um dia, uma em especial?

Queria também uma lembrança sem nenhuma contorção de arrependimento, sem nenhum traço que eu deseja apagar. A lembrança irretocável, pra se guardar numa redoma de vidro como aquela conhecida rosa.

Eu quero, com toda a minha ambição, alguns minutos parados no tempo. Em que eu não pense em nada, mesmo acordada, não sonhe com nada, nada nada. Em que não haja amanhã, ontem, ou anos atrás. Alguns minutos que se passem apenas com a contemplação da sua passagem, segundo após segundo, até que o encanto se desfaça e penetre novamente nessa vida cheia de contextos.

Queria um acorde que não precisasse de melodia pra significar tudo.

Eu quero tanta, tanta coisa.

Quero guardar perfeitamente na memória as mais belas mãos que eu tocar. As mais belas vozes que eu ouvir. Os passos mais envolventes que eu acompanhar.

As frases mais comoventes que eu ouvir, de repente, em meio ao engarrafamento, ou num instante banal qualquer. Aquelas que sempre me fazem ficar calada, parecendo que eu não dei a mínima importância.

Não, eu não preciso dançar aquelas músicas, eu já dancei quase todas que eu queria, e elas sempre tocam quando eu menos espero – às vezes quando eu peço também.

Queria não ter medo do meu medo, mas vê-lo como estou vendo agora, de olhos abertos.

Eu quero, e quero tanto, não esquecer nunca que eu quero tudo isso, e só isso, pra nunca nada me faltar.

15.10.05

O Encontro

Encontraram-se por acaso, em meio à Presidente Vargas.

Ela vinha do trabalho novo, em roupa social: camisa de botão, saia até o joelho, bolsa formal, sapato fechado. Misturava-se a toda aquela gente que passava apressada, na maioria também em roupa social. Mas ela... ela exibia um formalismo que não lhe cabia, e por isso mesmo orgulhava-se. Sentia-se, mesmo que deslocada sob aquela aparência, excitada por adentrar um mundo novo, cheio de regrinhas que ela assumia, passava a conhecer, deixando para o tempo livre suas excentricidades e estranhezas. Há muito tempo ela repudiara tais características, mas o tempo e as convivências haviam lhe ensinado a aprender a encarar as suas próprias diferenças com maturidade e compreensão. O seu mundo era restrito, pequeno, mais difícil de se achar. Não necessariamente melhor, mas, naturalmente a seus olhos, menos óbvio e, por isso, mais interessante. Dividia com determinadas pessoas esse pequeno mundo que os outros também ajudavam a construir, indicando dicas e pistas para a continuação desse. Freqüentava os lugares que se abriam a ela com mais naturalidade. Lia, ouvia o que a identificava. A roupa social, nisso tudo, era uma enganadora. Dava a ela um formato que não lhe cabia. Sentia-se, assim, aparentemente mais pertencente, mais comum, mais integrada ao mundo mais amplo que ela não admirava, mas do qual ela precisava. E sentia-se também ainda mais certa de sua identidade, pois que o trabalho e suas exigências eram apenas aparências, e a cada dia ela se lembrava do quanto aquilo não lhe signicava nada. No mais, era uma experiência nova, e isso já bastava.

Ele vinha no sentido contrário, vestido da forma de sempre. Despretensioso, natural, uma camiseta, uma calça jeans, as habituais correntes transpassando nos bolsos da calça, os cabelos presos, as tatuagens se insinuando sob a manga da camiseta. Andava, como diziam, largado. Os braços movimentavam-se muito, freqüentemente esbarrava em alguém na rua, mas não pedia desculpa, pois não notava. Não se sentia diferente, e nunca parara para pensar nisso. Desde cedo as amizades o encaminharam a um universo que ele acreditava ser o único existente, pois que o que chamavam de “padrão” era restrito a poucas pessoas. O comum, o normal, isso não existia. Até os que pareciam os mais evidentes tinham em si características peculiares que os diferenciavam. Reconhecia, contudo, sua pouca adesão a muita coisa que lhe diziam. Por isso andava por aí cheio de projetos, curtas independentes, lojas em sociedade com amigos, festivais de filmes, saraus com novos artistas, toda essa parafernália. Acreditava que um dia ainda se veria bem sucedido nisso tudo, realizado já era, amava cada coisa nova que lhe mostravam, câmeras, programas modernos de edição, fotografia urbana, arte misturada a tecnologia.

Ela não lhe reconheceu o rosto ao longe, só quando estavam muito próximos. A amplidão da avenida, cortada em suas várias faixas, permitia o movimento de inúmeros veículos que cortavam o asfalto deixando rastros de vento, velocidade e barulho, um barulho embriagante mas às vezes também insuportável. Era também som das pessoas, o movimento das pessoas, a mistura visual das pessoas e das lojas e dos prédios, uma confusão, uma mistura agradável desde que não em muita quantidade. Ela saía do trabalho, atravessava a avenida enquanto o sol ia sumindo, deixando um tom azulado sobre toda a cidade. Em meio a tantos rostos, ela só o viu por alguns segundos, enquanto se cruzavam, reconhecendo um o olhar do outro, analisando-se mutuamente. Ela reconheceu o mesmo personagem que várias noites encontrava, sem aviso prévio, em alguma noite da cidade, e que a embalava em sua conversa fluente, ainda mais desinibida com o alto volume da música de fundo. Eram conversas regadas a bebida, som, amigos, desencontros, iam embora sem avisar, às vezes encontravam-se de novo, voltavam a conversar. Tudo repentino, não planejado, não definido, assuntos aleatórios, discussões metafísicas, crises existenciais compartilhadas. Ele nunca lhe ligara, ela nunca soube muita coisa da rotina dele. Não sabiam os telefones, nunca haviam se visitado. Reservavam a surpresa das noites em que apareciam do nada e presenteavam um ao outro com sua presença e companhia. Talvez a pouca luz dos encontros os tivesse atrapalhado um pouco a se reconhecer durante o dia. Talvez a surpresa tenha adiado ainda mais a percepção de que não era um mero transeunte. Talvez tenham sido só três segundos, talvez mais, talvez menos.

Ela o fitou, sem desviar o olhar, surpresa, ainda mais do que quando o surpreendia às quatro horas da manhã em uma pista de dança ou um bar qualquer, sem já esperar vê-lo. Ele a reconheceu com satisfação e estranheza, julgando-a bem diferente de como costumava vê-la durante as noites. Os olhos sem lápis pareciam mais tranqüilos, doces, calmos. Mas o rosto conservava a mesma sinceridade que tanto lhe encantava. O andar era mais firme, agora que estava, provavelmente, em completo estado de sobriedade.

Passaram um pelo outro sem parar, sem se cumprimentar. Apenas olharam, sorriram de leve um para o outro, mantiveram o anonimato. Ele compreendeu, ela compreendeu. Reservaram aos poucos segundos a transmissão de uma mensagem abstrata mas perfeitamente nítida. Apenas se olharam, se reconheceram, sorriram, continuaram cada um o seu caminho. Ela pensou em olhar para trás, mas, mesmo que o tivesse feito, ele já estaria perdido de vista.

12.10.05

Eufemismo

Na penúria escondida sob as frases mais simplórias, qualquer coisa parecia inverossímil. Nada que é verossímil assusta. E no susto, ele percebeu que não precisava dos porquês. Interrogou seus artefatos não-mecânicos, presos sob a chancela da mesmice, e obteve com isso uma esquiva insuportável.

Nada ali devia ser confessado.

Enquanto tudo aquilo se perdia em uma bruma respeitável, podia-se acreditar que se vivia. Podia-se respirar, ir ao supermercado, marcar noitadas e acordar no dia seguinte com um cansaço satisfeito. Mas se o enquanto aquilo tudo era pouco e verossímil, e artificial e pesado, se nada do que ele pretendia e valorizava merecia seu respeito...

Havia de ser dito. E explorado. Mesmo que nada se pudesse revelar, ali estaria a chave para o não-saber, o não-querer, o não-despertar.

Por favor, deixem-me dormir. Meu sono é embriagante. Prefiro assim. Me deixa aqui, quieto, a contemplar o desprezível.

9.10.05

Cortesia da Casa

Dois amigos conversando na mesa de um café.
Estão falando trivialidades, o trabalho, o tempo, a vida.
Começam pedindo um sanduíche de peito de frango e salada no pão árabe, com creme de salsa.
"Ah, mas então, a vida, não é mesmo..."
"É verdade, veja só você..."
O garçom traz os sanduíches.
"Ainda bem que amanhã é logo sexta-feira..."
"É verdade, não aguento mais esse trabalho onde eu estou..."
O garçom traz os sucos: um de laranja, um de abacaxi.
"Obrigado"
"Obrigado"
O garçom é prestativo e educado, inconscientemente os amigos já decidiram dar uma boa gorjeta a ele.
"Tente outra coisa, cara..."
"Vou tentar, vou tentar, mas as coisas estão difíceis, emprego bom não está pra qualquer um..."
O garçom traz mais guardanapos, os amigos estavam realmente precisando, por causa do molho do sanduíche.
"Eu, no meu caso, não tenho muitas perspectivas..."
"E por acaso eu tenho?..."
O outro encara o sanduíche, sem coragem de mentir que sim.
"Logo agora que estou precisando de uma grana..."
"Seu pai ainda não melhorou?"
O garçom traz um bolo de nozes.
"Os hospitais cada vez mais caros..."
"Meu aluguel está nas alturas..."
O garçom traz uma torta alemã.
"Pois é, e além de tudo continuo sendo esse cara solitário...Só levo fora!..."
"É foda..."
O garçom traz bombons de amarula.
"Eu já desisti de achar a mulher ideal..."
"Eu vou ser sempre sozinho assim, não nasci pra ser feliz..."
O garçom oferece café.
"A vida é foda, cara..."
"Pra quê nascer, não é mesmo? Eu vivo cheio de problemas..."
O garçom traz o café.
"E é sempre assim mesmo, ninguém nunca está satisfeito..."
"O homem está destinado a sofrer...e nós inclusive..."
O garçom pergunta se desejam mais alguma coisa.
Mas os amigos estão de cabeça baixa, calados, pensando nas fatalidades. Nem prestam atenção ao garçom.
"É foda..."
"É verdade...é foda..."
O garçom traz dois punhais: cortesia da casa.
Os amigos o olham agradecidos.
O garçom sorri discretamente, satisfeito de sua competência.
"Obrigado..."
"Muito obrigado..."
O garçom só pede que eles paguem adiantado.

8.10.05

Vagalumes *

Estávamos caminhando juntos há tanto tempo, e nem tínhamos mais fôlego para conversar.
O som que acompanhava nossos passos vinha das árvores em volta, dos pernilongos, de água correndo em algum lugar que a gente não sabia onde. Provavelmente longe, mas mesmo assim a gente ouvia.
De vez em quando algum bicho gritava no meio das árvores.
E nenhuma luz.
Anoiteceu rápido, e a escuridão nos encontrou despreparados.
Mas eu não tinha medo, nem você.
Era só cansaço.
Quando apareceram os vagalumes, foi bem bonito:
Eles vieram rápido, e iluminaram tudo de repente
E logo desapareceram.
Então eu vi que você sorria.
Mas foi só por um instante, porque a escuridão voltou quando os vagalumes se foram.
Imaginação minha ou não, você sorriu o resto do caminho todo.

___

* Livremente inspirado em Architecture in Helsinki, "Imaginary Ordinary"

7.10.05

Dicionário

Folheio o dicionário distraidamente:
páginas e páginas, um monte de palavras.
Algumas banais, outras desconhecidas.
Uma delas me olha, pergunta se eu a conheço
- Eu não conheço.
Apresentamo-nos: leio seu significado.
Ela me suplica que eu a use,
nem que seja em um miniconto, um poema, uma frase só.

Ah, desculpa, não dessa vez.

3.10.05

Filtro

O mundo desapareceu sob os meus pés.
Agora mesmo,
por que não vejo esta rua
apenas como uma rua?
Tudo aparece em cores nubladas.
As pessoas que passam por mim
passam sem vida
tristes
repetitivas em seus afazeres.
Nem a luz do Sol me parece menos morta hoje.

Teu gosto

Do teu gosto
ficou um amargo em mim
na minha boca
e em todo o resto.
Ficou um cheiro repulsivo.
O que antes era aroma
virou acre.
Estragou, azedou.
Acho que perdeu a validade.

Telefonema

- Tá tudo certo:
do lado do posto de gasolina
tem uma escola primária.
Eu levo os fósforos.

Eric & Carolina

Os bares não variam nunca, até as variações são iguais. Às vezes se você toma uma cerveja a mais, uma a menos, eles podem soar mais ou menos interessantes, mas no geral... todo mundo sabe o que os reveste. Ele tinha dito, não estava a fim, estava com sono, cansado, disposição nenhuma. Aí vem aquele chiado, aquela repetição de “velho”, “chato”, “vai fazer o quê em casa?”. Argumentos cotidianos, nada muito elaborado, só o tom de desprezo pela sua vontade momentânea. “Foi mal pessoal, vou pra casa...”. Levantou umas três vezes, veio de novo aquela algazarra, as pessoas dos lados mandando sentar de novo, encher o copo, entrar na conversa, dar a opinião sobre alguma coisa que ele não identificava no meio do barulho. “O quê?”, tentou uma, duas vezes, depois desistiu, ficou reparando nos quadros da parede em frente. Alguém ria dele, chamava de surdo. Ele riu, falou alguma bobagem pra satisfazer. Uns acharam engraçado, deram uns tapinhas nas costas, ele ficou sem-graça, uma bobagem daquela e as pessoas rindo. Efeitos da cerveja, só podia ser. Depois, depois de um tempo, fica mais fácil dar tchau e ir embora. Uma menina simpática ali do lado, nunca tinha visto, mas pôs-se a tagarelar com ela alguma futilidade. A menina era divertida. E nem parecia que estava bebendo. “O que é isso?”, perguntou, era tônica. Provou, mas já sabia o gosto: argh! A menina fingiu que não gostava também, mas disse que era bom pro câncer de esôfago. Ele fez que achou engraçado. Pouco importava, a menina era agradável. Uns amigos do outro lado lançavam uns olhares maliciosos, ele se virou pra fingir que não via. Droga, todo mundo sabia ali que ele estava brigado com a Carolina, pra quê aquelas insinuações? Não podia falar com nenhuma mulher só pra papear? A menina, nesse intervalo, já conversava com outras pessoas, tentou inclui-lo, ele não ouvia. Devia estar surdo mesmo. E velho. E chato. Pelo menos nem estava deprimido, e todo mundo surpreso, tentando consolar... “Ah não, eu tô legal, só não quero sair hoje...”. Acreditaram ou não, forçaram a barra, lá estava ele no bar. Um sonzinho confuso saía de alguma parte do teto, tudo ali meio confuso aliás, e o cardápio também... quis comer nada. Aproveitou levantou mais uma vez, ninguém deu atenção, ele acenou pra algumas pessoas, todo mundo riu de volta, ah que felicidade. Foi embora de ônibus, com a cabeça caída pro lado, pensando na conta da lavanderia que tinha esquecido de pagar.

***

Uma vontade incontrolável de ouvir Eric Clapton, ia pensando enquanto subia a escada com a chave na mão. Qual disco? Um ainda devia estar na casa da Carolina... Ah, a Carolina. Ela era fabulosa, pensava, sempre que brigavam. Dava saudade. Ele tinha errado, disso não tinha dúvida, mas droga, todo mundo erra. E todo mundo erra feio pelo menos uma vez. E isso queria dizer o quê? Que ele não gostava dela? Que ele não a respeitava? Não, queria dizer... não sabia. Só sabia que não importava. Tudo bem, importava, a menina se chateou, ele viu a besteira que tinha feito, mas já estava na hora de esquecer. Carolina era fabulosa, mas às vezes teimosa demais. E ele era bonzinho demais. No início achava que ela se aproveitava disso, mas depois foi equilibrando. Todo mundo erra feio, ele pensava, procurando o CD do Eric Clapton, não adiantava ficar insistindo em tentar se convencer de que ele era um cara mau. Não era, pronto, e dane-se o que as pessoas iam pensar... “Você vai perdoar isso, Carolina?”, “Carolina, nunca esperava isso dele...”, “Ah, você esquece ele rapidinho, rapidinho, tem um amigo meu que...”. É, Carolina, vai ouvir os outros,vai. Eu vou ouvir Eric Clapton, a noite toda, e se eu dormir tudo bem, se eu não dormir fico fazendo backing vocal pra ele. O Eric merece.

***

Já estava na segunda repetição do CD, alguém ligou no celular, preocupado com ele. Ele explicou, tinha saído algumas horas atrás, se despediu e tudo, não tinham visto? Estava tudo bem, tudo bem. Não, nenhuma notícia da Carolina. Pode deixar, eu não estou mal. Não se sintam mal por mim, aproveitem a noite. Estou melhor aqui do que no bar. Não se sintam mal por mim, eu estou legal, mesmo. Estou ouvindo Eric Clapton. É, aquele CD do... A ligação caiu.

Ninguém devia acreditar que ele não estava mal, só porque tudo indicava que ele devia estar mal. Fazer o quê. Estirou os braços, as pernas, deve ter dormido logo em seguida, pensando nas roupas da Carolina, nos bibelôs da Carolina. Ela bem que gostava de Eric Clapton também, por influência dele...

***

Amanheceu e nenhum sinal de chuva. Dia pra uma camiseta qualquer, uma calça jeans, aquele tênis familiar. A vida ficava meio esquisita sem a Carolina, tinha que se acostumar. Às vezes ele pensava em fazer amizade com as pessoas do trabalho, ficava se perguntando por que eles não despertavam nada além de simpatia nele. Ia tentar mais uma vez naquele dia. Nem estava de mau-humor, ia ser fácil, podia passar o tempo mais rápido.

A mulher de cabelo vermelho mal pintado contava histórias do seu filho. Ele ouvia com desinteresse. Pensou em alguma coisa pra falar, mas nada acrescentava à conversa. Como as pessoas conseguiam se empolgar conversando sobre criança? Só ela ali tinha filho, droga. Mudem de assunto. Começaram a falar de uns filmes... um que ele tinha visto, tinha gostado, todo mundo tinha gostado aliás, mas pra quê falar sobre aquilo? E o outro... todo mundo tinha gostado, ele não. Começou expondo sua opinião, veio uma avalanche de idéias contrárias, ele até tentou insistir amigavelmente, depois voltou a se concentrar no computador à sua frente, fingiu que tinha encontrado, do nada, um monte de trabalho por fazer. Alguém tentava lembrar o nome daquele restaurante mexicano, perto dali, ele lembrava, lembrava e não falou, não tinha porquê. Alguém lembrou além dele, todo mundo ficou aliviado, mas o nome estava ligeiramente errado, ninguém reparou. Ah, que importava. Olhou os emails de novo, em busca de algum pra passar tempo, acabou lendo os antigos da Carolina.

A Carolina estava dando uma de teimosa fazia muito tempo. Resolveu ligar pra alguém, propor uma saída. Os outros podiam estar certos, ele podia conhecer alguém bacana, esquecer a Carolina... ou pelo menos se divertir enquanto ela não ligava. Vasculhou a memória, em busca das possibilidades. Eram poucas. Resolveu ligar para a Bianca. Capaz de ainda gostar dele. É, ia ligar para ela logo que chegasse em casa, prometeu a si mesmo.

***

- A Bianca não está, quer deixar recado?

***

Desistiu de fazer amizades no trabalho. Brincou com o computador o dia inteiro, como já era hábito. Nenhum email novo, pra variar.

- Oi Alexandre, você ligou ontem, né?
- Liguei sim...

Bianca continuava com a mesma voz. Um tom ligeiramente mais grave que o comum, mais lento também. Era tranqüila, bem tranqüila de conversar. Falou com ela 40 minutos no escuro, o volume do Eric Clapton abaixado, deixando passar só uns ruídos incongruentes. Estava ouvindo o mesmo CD há três dias. O Eric Clapton era realmente muito bom. Ia perguntar se a Bianca gostava, desistiu. Cansou de falar com ela, nem chamou pra sair. Disse que ia ligar outro dia pra marcarem alguma coisa, tinha que trabalhar cedo no dia seguinte. Ela se despediu como sempre, bem humorada. Desligou. Dois minutos no escuro, a voz dela ressoava, sem emoção. Lembrou que ela sabia que ele trabalhava à noite, ela mesma fazia o turno da manhã na mesma empresa. Riu dele mesmo. Se fosse a Carolina, teria jogado a mentira na cara dele, chamado de cínico. E terminaria com “a gente se vê amanhã”, no seu tom ranzinza. E ele a veria no dia seguinte, feliz e faceiro, e ela animada com alguma coisa nova que tinha descoberto por aí... É, a Carolina era fabulosa.

Levou mais tempo para dormir esse dia.

***

Nos dois dias seguintes era fim de semana, os amigos ligaram de novo de madrugada, bêbados, disseram que iam passar na casa dele e arrastá-lo pra fora de casa. Ele disse que estava vendo “A primeira noite de um homem” na TV, e que os comerciais já tinham acabado, tinha que voltar. Alguém murmurou alguma coisa do outro lado da linha. Desligaram. Ficou vendo filme e comendo chocolate, feliz. Nem ligou para a Bianca de novo. Ela mandou uma mensagem para o celular dele, ele respondeu alguma banalidade.

***

Na noite seguinte deixou o celular sem som. Era domingo. Voltou a tocar o mesmo CD, mas já estava cansando das músicas. Deixou num volume mais baixo, estava com preguiça de levantar e procurar outro disco naquela bagunça da casa.

Dormiu umas duas horas, acordou sem saber por quê. Bebeu água, revirou a TV, não achou nada, mas deixou ligada, o som competindo com o do CD. Adormeceu.

Acordou de novo pouco tempo depois. O celular piscava quatro chamadas não atendidas. Viu uma por uma, parou na terceira. Era da Carolina.

Tentou raciocinar a diferença de horário, devia fazer mais de meia hora. O cérebro ainda resistia, cheio de adormecimento do sono. Ficou ainda parado no escuro um tempo. Os sons se misturavam, começavam a irritar bastante. Ligou de volta, ninguém atendeu. Deitou, ficou olhando o teto escuro. Tentou imaginar se o som estava incomodando os vizinhos. Ligou de novo. Nada.

Levantou, desligou a TV e o som, vestiu uma blusa qualquer, destrancou a porta, desceu, foi ver a rua. Andou até um carro verde musgo parado ali perto, respirou fundo, tentou a porta: estava aberta.

Entrou com o coração eufórico. Carolina estava de vermelho, um vestido bonito que ela usava nas festas de família. Ele disse o nome dela um monte de vezes, olhando o rosto dela, a roupa dela, a mão dela. Ela olhava para frente, depois se virou, beijou os cabelos dele. Estava com uma expressão zangada ainda, mas o toque era macio, calmo, paciente. Ela respirava forte, estava com os olhos escuros, ele a achou linda. Disse que ela estava linda. Ela estava comendo um pacote de batata frita, ofereceu a ele. Ficaram os dois comendo batata frita no carro. O limpador de vidro estava ligado, andava pra lá e pra cá, mas não estava chovendo.

- Esse negócio faz um barulho irritante, não?

Ele concordou vagamente.

- Por que não desliga? Nem está chovendo.

Ela desligou. Depois pegou a batata frita de volta. E disse:

- A gente se vê amanhã.

Ela o beijou devagar, segurando o rosto dele com as duas mãos, depois abriu a porta.
Quando ele subiu, botou o Eric Clapton para tocar, deitou de novo na cama. Ficou lembrando do restaurante mexicano, perto do trabalho. Podia ir com a Carolina lá um dia desses.

***

1.10.05

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