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31.12.05

Crise Existencial

- E aí, como é que vai?
- A gente vai indo...
- Vai indo? Como assim!? Pode falar, cara, quê que está havendo?
- Ah, nada não, deixa quieto.
- Pô, cara, eu sou teu amigo ou não sou? Pode confiar em mim!
- Não é isso...
- Alguma coisa com a patroa? Já sei: brigaram de novo...
- Não, nem é... Tá tudo tranquilo, já marcamos até uma viagem pras férias, melhor não podia estar, ou até podia, se a gente tivesse casado hoje, mas depois desse tempo até que a coisa vai bem.
- Ih, já sei então, tá faltando grana. Olha, fica sabendo que o que você precisar eu posso tentar te arranjar, não tenho lá muito, mas sabe como é, a gente dá um jeito, amigo é pra essas coisas. Tem um banco lá perto de casa que...
- Nada, cara, nisso eu me viro...
- Certeza, velho?
- Sério.
- Mas pô, não precisa ter vergonha, essas coisas acontecem com todo mundo, um dia a gente descontrola o orçamento e sabe como é... eu mesmo ano passado tive que vender meu carro, tinha comprado só alguns meses antes...fazer o quê.
- É... é foda.
- É foda. Mas então que tu tá com essa cara? Toma aí mais uma cerveja e me conta.
- Deixa quieto, deixa quieto...
- Tô ficando preocupado... coisa de família?
- Sério, cara, não vale a pena mexer nessas coisas.
- Olha, vamos ser sinceros, tu me fala logo isso.
- Cara, tu não vai entender, não é nada disso, mas é que...
- Tu não tá me levando a sério! Pode falar, cara, pode falar.
- Pô...tudo bem, mas depois não diz que eu não avisei...
- Pode falar.
- Pô, sabe o que que é... cara, tô com umas questões metafísicas aí...
- Questões o quê?
- É, uns dilemas existenciais... Tipo de onde vim, pra onde vou, isso tá me tirando o sono!
- Ah entendo... então é mesmo a patroa, né? Tá negando fogo, é isso?
- Que que tem a Joana com isso, cara?
- Olha, por que você não vai num desses clubes pra relaxar?
- Clubes? Eu tava tentando ler Nietzsche pra ver se descobria o sentido da vida...
- Pô cara, agora tu apelou... é sério essa história de crise existencial?
- Sério... Nunca fiquei tão mal. Nada que eu faça tem sentido... pra que ganhar dinheiro? Pra que tantas mulheres? Pra que ter filho, casa, carro, emprego garantido? A vida é inútil, tudo passa, a gente vem e vai tão rápido e sem função que... ah, sei lá.
- Ah fala sério, isso pra mim é viadagem.
- Porra vai se foder cara, bem que eu te avisei, não queria falar nada, sabia que tu era um mané que não entende de nada só quer saber de tomar cerveja e catar mulher na rua. Eu vou embora.
- Também não é pra tanto!
- Ah vai se foder que não é pra tanto!
- Ah então vai mesmo, aproveita pergunta pros mendigos se existe vida após a morte!
- Pô, cara, isso é sacanagem, nisso eu ainda não tinha pensado...
- Quê?
- Vida após a morte... é mesmo... Agora tá tudo muito pior...
- Caralho, que que eu tô fazendo aqui...
- Acho que vou à igreja. É o melhor que eu faço. Ninguém me entende.
- Vai, vai mesmo, de madrugada bem capaz de ter um padre bonitão pra te ajudar nessa sua crise de viadagem.
- Ah foda-se você, o bar e o mundo todo.
- Pelo menos tô melhor que tu!
- Então tá, eu vou é rezar.
- Então vai mesmo, em vez de falar merda no ouvido dos outros.
- Vou mesmo.
- Vai, vai!
- Na volta eu te conto se Deus existe.
- Tá bom, então. Mas deixa uns trocados pra eu pagar a conta.
- Tudo bem, dinheiro não vale nada mesmo...
- É por isso que eu te admiro... Deus vai considerar isso quando tu morrer...
- Tomara!
- Valeu, cara.
- Valeu.
- Boa sorte.
- Pra você também.

25.12.05

Conto de fadas sem título - parte II

Prepararam-se para o grande dia durante cinco semanas, elaborando o Grande Plano às escondidas, claro, e ainda com mais zelo do que o normal. Alguns dias deixaram-se até levar pela empolgação e fizeram dever de casa, jantaram e foram à missa nos horários perfeitamente corretos, dando margem a suposições de que estariam definitivamente curados da rebeldia. Doce engano. Pois o horário de dormir foi drasticamente ignorado, e enquanto a pequena Anne arrastava sua camisola cuidadosamente rumo ao quarto do irmão, Leland ia retirando do baú as folhas e folhas de anotações cuidadosas. Aquelas noites eram preenchidas pela imaginação e a satisfação completa pela simples previsão da futura aventura, aquela que superaria todas as outras, e diante da qual todos ficariam fascinados.

Nas manhãs seguintes, encontravam-se os irmãos adormecidos sobre o tapete, esquecidos da vigilância da babá, rodeados por lápis coloridos e papéis preenchidos pelos mais fantasiosos planos, que voavam pelo quarto, contornando as curvas das paredes, atingindo o lustre e novamente voltando para o chão, leves, a velar o sono e a infiltrarem-se nos sonhos de Leland e Anne.

O tão esperado grande dia transcorreu como de costume: aulas de piano, de costura, lições e exercícios, compromissos sociais, orações antes de dormir. Só não imaginava a babá que, além do Pai Nosso, havia um pedido final, de joelhos: que Deus os guardasse na jornada em busca de tomates roxos e afins na floresta. Depois do amém reforçado pela Sra. Smithee, Leland e Anne sentiram-se perfeitamente protegidos.

Acordaram de madrugada, os corações palpitando de ansiedade e medo. Anne dormira com seu traje especial sob a camisola, bastava tirar a vestimenta de cima e estaria pronta. Aproveitou alguns minutos e ajeitou os cabelos em uma longa trança, sem prendê-la no alto da cabeça como a mãe sempre exigia. Dessa vez seria tudo como eles queriam.

Leland esperava por ela na sala de reuniões, com os mapas e planos amarrados às costas com uma tira de couro que surrupiara dias antes do carpinteiro. Logo que a viu, levou o indicador aos lábios para lembrá-la de que o silêncio era estritamente necessário. Anne, obediente, tanto esforçou-se em fazer nenhum barulho quanto passou a andar em câmera lenta, mordendo os lábios de excitação.

Pularam a janela, atravessaram os jardins. Leland colheu uma rosa, encaixou-a na trança da irmã. Ela virou-se para sorrir-lhe, acabou tropeçando, mas seguiram com cuidado até o final do pátio. Passaram pela passagem escondida do muro de arbustos, abandonaram a mansão enquanto o Sol começava a nascer sobre os campos. Dentro de uma hora de caminhada estariam no destino almejado.

(CONTINUA NO PRÓXIMO CAPÍTULO - UM DIA ACABA...)

22.12.05

Conto de fadas sem título

Era uma vez, no distante reino de New Westhampton, conhecido pelos poderes terapêuticos das águas de seus rios e pela sua produção de lã das mais variadas cores, um casal de irmãos incoerentes com sua posição de descendentes da realeza. Chamavam-se Leland e Anne. Leland, seis anos mais velho, freqüentemente era acusado pelos pais e pelos demais membros notáveis da corte de ter influenciado negativamente sua irmãzinha, levando-a a cometer as pequenas infrações e travessuras que ele se acostumara a fazer desde criança. Leland, por vezes, buscara a companhia de plebeus para suas aventuras, o que chamara ainda mais atenção para seus pequenos escândalos. Mas desde que a pequena Anne atingira a idade suficiente para segui-lo e admirá-lo, tal abuso tornou-se desnecessário. Assim, as pequenas rebeldias de criança deixaram de envolver discrepâncias sociais e passaram a ser apenas simbolicamente incômodas, comportamentalmente(?) desaconselháveis. Devido a tão pouca gravidade, e somado ao fato de o reino estar embebido em uma fase de bem-aventurança com a venda das lãs coloridas e o turismo pelos parques aquáticos, o rei e a rainha, naturalmente os pais de Leland e Anne, limitavam-se a repreensões leves e, mais freqüentemente ainda, fingiam ignorar o destino que se afigurava aos jovens herdeiros. Afinal, eram meras crianças, e o sucesso financeiro imprimia aos reis uma condescendência incomum aos reis e rainhas dos contos de fadas.

Talvez tenha sido esse excesso de negligência o culpado pelo trágico destino que alcançou a princesa Anne. Dizem que tais histórias acontecem às vezes para aqueles inquietos de espírito; dizem que a pobre menina foi vítima de forças negativas, que haviam sido aprisionadas pelo padre local mas que, por algum motivo desconhecido, conseguiram rebelar-se. Dizem também que nada disso nunca poderia ocorrer, e que tais idéias fantasiosas são meras invenções cujo objetivo é simplesmente manter o comportamento correto das crianças, assustando-as com contos de fadas assombrosos, impedindo-as assim de se aproximarem da densa floresta ao sul do território de New Westhampton.

Os irmãos ouviam histórias de que a floresta era encantada e habitada por fadas, elfos, duendes e demais criaturas. E que a presença desses, embora estivessem sempre invisíveis aos meros mortais, produzia naquela área produtos de inusitada formação. Eram folhas e flores azuis, formigas que previam o futuro, girassóis que seguiam a lua em vez do sol, troncos de árvores que mudavam de posição ao longo das noites, narcisos-dos-prados que produziam mel, porções de terra que encerravam passagens secretas... Certamente que ninguém nunca tinha de fato encontrado um desses, mas todos alegavam o feito, embora nunca mostrassem aos outros.

Pois então Leland e Anne queriam encontrar tudo isso. E mostrar, que não fosse para todo o reino, pelo menos um para o outro.

*

(CONTINUA NO PRÓXIMO CAPÍTULO)

18.12.05

Uma Carta

Olá, meu caro

Já faz um bom tempo que não escrevo. Talvez por negligência minha, eu sei, ou por um bocado de razões intangíveis que me levam a crer que... bom, deixemos disso. Não escrevi, e não tenho como negar: tudo que tenho passado me faz pensar bastante, tanto que ainda não consegui organizar tudo isso.

Algumas vezes cheguei a começar umas linhas, mas mal chegava ao final da primeira página já me sentia de modo completamente diverso, tornando inverdades tudo que tinha escrito anteriormente. E assim aconteceu algumas vezes, tenho inclusive vários papéis com cartas incompletas.

Na verdade, não sei o que te dizer. Você é um dos poucos que ainda torce verdadeiramente por mim, que não me cobra notícias por mera educação. E só saber isso já me conforta. O que aconteceu desde aquele tempo em que estive internado, foram tantos anos e até agora não sei bem se ainda há alguma chance de recuperar por completo tudo que gostaria.

Alguns diriam que a culpa é toda minha, e que por isso não mereço despertar compaixão de qualquer pessoa. De quem é a culpa, no entanto, não importa, visto que não altera o passado; sei, contudo, que parte da responsabilidade é minha. E outras partes, não cabe a mim apontar. O que tenho encontrado nos olhos de todos, nas entrelinhas das conversas do cotidiano, é essa afirmação subentendida: ele merece, ele que colha o que plantou. Talvez seja verdade. E, se isso os torna mais confiantes em suas convicções, não posso negar que se concretizou.

Devo ter dito tudo isso já algumas vezes; provavelmente. Mas me repito. Porque até hoje, desde que voltei ao mundo, por assim dizer, ainda não me reintegrei a ele. Como se a cada dia descobrisse a verdadeira data do dia anterior, estou sempre atrasado, sempre buscando aquilo que, tão logo eu atinja, já se tornou obsoleto. Assim, a minha vitória é sempre vista como um desperdício de tempo.

O tempo, aliás, tem sido meu pior inimigo. Quando penso nele, vejo um fantasma a me assombrar, a me lembrar que, por mais que eu tenha retornado à convivência normal, o passado persiste no presente, como uma cicatriz enorme no seu rosto que todos notam. A diferença é que a ninguém importa o que levou a isso. Importa banir o seu rosto da visão; importa eliminar esses traços mal acabados.

Desculpe, meu caro, tudo isso. Como eu disse, as coisas variam muito e em boa parte do tempo eu não me importo com isso. Sei que estarei sempre um passo atrás, mas é bom saber que estou de volta à vida, que estou ao lado de todos, que não estou em uma outra dimensão como eu costumava viver. Alguns diriam que me contento com migalhas; não acredito nisso. É preciso se satisfazer com as pequenas e as grandes vitórias, e disso me orgulho, de ver com precisão o que eu tenho alcançado. Cada um tem sua história; a ninguém tem importado a minha, e nem deveria ser o contrário. A gente aprende com a hostilidade a ver melhor a beleza que existe no mundo.

Soa livro de auto-juda tudo isso?

Não, não tenho lido esses livros. Tenho lido Maiakóvski, Hamsun, Tchekóv e Gogol, Proust e Joyce, Machado e Augusto dos Anjos. Misturo-os todos em um álbum de recordações, fatiando suas palavras e deglutindo-as com prazer, como nos velhos jantares a que comparecíamos, com nossa mocidade e nossa pretensão de viver. Tenho feito crescer também o restaurante, Marisa cuida dele como de um filho, as paredes agora estão decoradas a rigor e você precisa ver os cascalhos que infiltramos pelo chão, formando mosaicos típicos. Venha nos ver quando puder, e abrirei mais um vinho para lhe presentear, para agradecer pela sua amizade.

Um novo ano está prestes a começar, meu caro, e eu insisto em ver as viradas de tempo como promissoras. Às vezes, no fim do dia, fico a esperar os últimos clientes sairem, e enquanto isso as luzes vão se tornando mais amareladas. O ambiente escurece, e meu coração pesa por mais um dia que se passou. É aí que me lembro de todos os dias que virão, e de como há tantas coisas a serem vistas, provadas e tocadas. Me apoio no balcão, e preparo as novidades para o dia seguinte. Talvez amanhã eu não veja essa passagem de tempo como triste; sonho com esse dia. Sonho com o dia em que tudo terá, finalmente, passado, e eu terei alcançado a normalidade, e poderei afrouxar o passo, e caminhar ao lado daqueles que hoje precisam virar pra trás pra me olhar. É, tudo indica que esse dia vai chegar, mas mesmo agora eu já me sinto feliz. Sim, uma palavra perigosa de se usar, mas creio que tenho essa liberdade.

Torço para que você esteja feliz também, ao seu modo, com seus estudos e publicações, suas fórmulas e clínicas. Meu caro, despeço-me aqui, esperançoso e nostálgico como em todo fim de ano. Em breve poderei também ir te visitar, e te contar os pequenos fatos que se amontoam nessa distância que há entre nós.

Como diz uma certa canção de Chico: eu vejo a barra do dia surgindo pra gente cantar...

Um grande abraço.

............

17.12.05

p.í.l.u.l.a.s.

"Sinto falta das nossas brigas, das tuas grosserias, das tuas porradas..." - e ela saiu recitando pela rua, tentando decorar para a apresentação da noite. / Toddy não afunda, alegou o rapaz, defendendo a superioridade de Nescau. / Que seria o fuso de uma roca?, perguntou-se a menina, antes de dormir, lembrando-se da história da Bela Adormecida. / Meu maxilar é gordo, lamentou ela, tentando fazer cara de sexy. / "O ódio também é uma emoção", ele refletiu. / Engasgada com um comprimido de tylenol. / Atropelada pela bicicleta do carteiro. / "Ele ficou batendo na minha cabeça. Que coisa sem sentido. Não se bate na cabeça de ninguém. Odeio que batam na minha cabeça". / A garota decidiu começar a beber na festa de fim de ano da empresa em que trabalhava. Tomou um porre ali mesmo. / Cinco mulheres de roupa de festa no boteco, tentando não levantar da mesa pra disfarçar a incoerência - compra uma cerveja pra mim, meu vestido é mais longo que o seu. / O pessoal sai muito pra beber e fumar, eu não curto muito não, não bebo. / No acampamento, o rapaz da barraca ao lado: a gente tem que comprar água, papel higiênico, pasta de dente, maconha... / "Adoro choque térmico!" / "Tenho medo dessa música!", disse a menina assim que entrou na festa, ouvindo Marylin Manson / "A salvação é para os magros, querida. Ele é gordo." / E todo mundo dentro da van ficou em silêncio e deprimido quando começou a tocar "Mentiras" no rádio / "As Cidades Invisíveis, O Cavaleiro Inexistente...esse cara só escreve sobre coisas que não existem?" / "Não bate palma mais não?" - perguntou a velhinha à neta, quando terminou de jogar paciência, aumentando o volume da caixa de som. / Ela colocou o nome dele no jogo de Copas do computador e fez de tudo pra que perdesse. Quando viu: 'Thiago-Último lugar', não poderia ficar mais feliz.

Sobre a fragilidade do gelo*

Houve um tempo em que ele costumava sentar-se à margem da pista, e observava as pessoas patinando, todas agasalhadas, com seus patins arranhando o gelo e formando desenhos uns sobre os outros naquela placa que formava o chão no inverno. Fazia já alguns anos que ele próprio não se entregava àquela distração; preferia assistir, preferia manter-se ali, a observar, a perder-se naquele vai e vem repetitivo, naquela hipnose misturada de patinadores. Casais, crianças, jovens, idosos, aprendizes, experientes, medrosos, ousados, cruzavam-se pra lá e pra cá em um interminável redemoinho, voltas e voltas, como numa orquestra desencontrada, cada um em seu ritmo. Só que uma orquestra silenciosa, preenchida apenas pelo burburinho das vozes. Só que o silêncio do parque era tão opressor no frio que as vozes se perdiam a pouca distância, e a alegria dos patinadores ficava até meio estranha, surda, uma alegria sem som, abafada, uma alegria de um sol se pondo, de algo se desfazendo, se dissolvendo, como o próprio gelo.

Quando ele ouviu o choro da criança, tão fraco como os outros ruídos, foi preenchido por uma sensação ainda sem nome. A lembrança foi se formando em seu espírito e, ao longo dos segundos, naquela insistência do choro, foi se dando o reconhecimento, com a vaga lembrança de uma frase: don't be surprised when a crack in the ice appears under your feet. E os patinadores foram desaparecendo de sua visão, enquanto ele se concentrava em dar nome àquela lembrança.

Virou-se. Tentou reconhecer de onde vinha o choro. Uma moça jovem muito pálida, de cabelos ruivos, ninava um bebê a poucos metros dele, pouco mais à esquerda. Mamma loves her baby; and daddy loves you too.

Lembrava-se agora. Com a totalidade da sensação que aquela música lhe proporcionava desde tempos remotos.

Lembrava-se de como a canção era sombria. De como começava com um choro de criança. De como continuava com a repetição de notas agudas no piano. De como terminava com uma guitarra ameaçadora. De como eram terríveis aqueles dois minutos e meio. De como ele tentava evitar lembrar-se do que a canção dizia - justamente por acreditar. Justamente por concordar.

Virou-se novamente. And the sea may look warm to you, babe. And the sky may look blue. But oh, babe... Ele sentiu uma leve pontada no peito, uma dor aguda de algum tempo atrás.

A mãe, cheia de seus cuidados, nunca seria suficiente. Mesmo aquela moça ruiva, concentrada em consolar o choro do filho. Nem enquanto aquela criança permanecesse criança. Nem quando ela crescesse, e tivesse que enfrentar sozinha a vida. Por enquanto, havia aquele consolo; aquele cuidado. Mas mesmo nessa época, talvez aquela mãe causasse danos ao próprio filho, sem tomar consciência disso. O perigo repousava nas mesmas mãos que acariciavam aquela pele tão nova, que conduziam aqueles passos errantes, que o incentivavam a se alimentar. O perigo repousava nela própria, e em todos ao redor. E quando ele olhasse com mais atenção, repararia, em algum momento de sua vida, como era frágil o solo em que ela se erguia. Como era frágil o solo de todos nós.

Você se engana, e você se enganará sempre. E você percorrerá os caminhos mais perigosos, acreditando ser apenas uma passagem ou uma trilha. E você ainda conservará aquela vaga lembrança dos braços te acolhendo após o choro, mesmo quando eles não estiverem mais lá, mesmo quando nada tiver substituído, que será o momento em que você vai mais precisar. Você, apenas mais uma criança, nos braços de alguém que nunca poderá tornar o caminho mais sólido para você pisar.

Ele se virou novamente, a criança cessara o choro. Enquanto isso, um patinador seguia, de costas, pelo gelo, e afastava-se do grupo. Ele ia devagar e cauteloso, cruzando a massa branca sob seus pés, alternando as passadas, sem reparar na insuficiência da beleza de seus passos.

Quando percebeu as rachaduras, hesitou.

De longe, ele viu. Observava, mas não conseguiu fazer nada. Com a testa franzida, um temor que o paralisou, ele assistia o patinador buscando para onde ir, a que direção seguir, mas era inútil. O gelo se abriu sob ele, sugando-o tão silencioso quanto abruptamente, e no mesmo instante já não se via mais aquele cachecol colorido em meio à paisagem branca. Ele viu ainda os movimentos das braçadas desesperadas. Viu como as pessoas em volta não reparavam, e continuavam sua diversão. Viu como os poucos que se deram conta do ocorrido, apenas olharam para baixo, num movimento resignado, e pararam apenas por um momento, para juntar-se novamente aos outros, ignorando a eventualidade da repetição do acidente.

No segundo seguinte, ele não viu mais o buraco. O patinador que ele acreditara ter caido na água congelante, estava misturado ao grupo, demorou apenas alguns segundos para reconhecê-lo, achá-lo em meio aos inúmeros outros patinadores. A criança repousava à esquerda, no colo da mãe, aquecida e protegida.

E enquanto ele permaneceu ali, tentou afastar de seus pensamentos a súbita certeza de que, acontecesse o que acontecesse, em algum dia, mesmo que ele não estivesse lá para presenciar, cada um daqueles patinadores seria sugado por um rachar do gelo. Cada uma daquelas pessoas se surpreenderia com o vão surgindo sob seus pés, apesar de que ninguém em volta tomaria conhecimento. Cada um deles. Todos eles. Ele, inclusive. E sentiria o frio percorrer-lhe a espinha até retirar-lhe a vida, mesmo após tantas voltas naquela pista que parecia apenas um divertimento banal de inverno de todos os anos.

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* Mais um texto inspirado em música. Dessa vez, "Thin ice", Pink Floyd.

14.12.05

A morte te espera na pracinha

Três amigos inocentes foram passear no parquinho: Sheila, Daniel e Clara. As meninas tinham 21 anos; o menino, 23. Todos maduros, inteligentes, pacíficos e saltitantes na vida. Claro que essa descrição só e coerente com o fato de que eles tinham acabado de beber algumas garrafas de cerveja e tinham tomado sorvete sabor crocante. Daniel, o mais guloso, tomou 2 sorvetes. Antes disso, estavam felizes em suas cadeiras de praia, conversando sobre a vida, no meio do mercado, quando decidiram dirigir-se à Praça Afonso Pena, reduto localizado em frente à moradia da pequena Sheila - assim chamada porque era muito baixinha, detalhe que será importante mais adiante nesta história.

Seguiram cantarolando pela rua até a pracinha. Lá, ainda influenciados pelo bom humor da bebida, acocoraram-se no balanço, balançando para a frente e para trás. Pena que aqueles balanços estavam tão baixos - o pobre Daniel, que era alto, foi prejudicado por suas longas pernas. As meninas, em apoio ao amigo, decidiram mudar de brinquedo.

Esta é a história de como os 3 pobres jovens foram ardilosamente ameaçados na pracinha e posteriormente expulsos do singelo recanto por 3 meliantes, maldosos e feios, muito feios, ai ai ai. A ordem é cronológica e as impressões, caso alguém os acuse, são verdadeiras, de maneira alguma influenciadas pelos efeitos da cerveja, porque afinal não foram tantos litros assim.

Pâmela, 3 anos, precocemente esclerosada

Pois então. Após abandonarem o balanço, os 3 amigos resolveram instalar-se em uma casinha de madeira guarnecida por um escorrega, um balanço de pneu e algumas escadinhas coloridas. Parte das telhas estava quebrada, mas isso não influenciou negativamente o trio, pelo contrário, rendeu algumas piadas muitíssimo engraçadas, como: "Clara, você vai pegar chuva! Hahaha!". O ambiente lúdico da casinha era tão agradável que eles lá ficaram conversando, passeando por assuntos como a morte de criancinhas, a dificuldade de se obter fumo hoje em dia, a tristeza que é a vida blá blá blá. Todos assuntos bastante adequados para uma pracinha. Não que o bom humor alcoólico tivesse ido embora, mas eles estavam tão acostumados de só falar nesse tipo de coisa feliz, que não tinham outros assuntos.

A conversa assim seguia quando um elemento começou a rondar a casinha. Era uma pequena infratora; loira, cabelos cacheados, short com a estampa da Barbie, tênis da Sandy, e justamente por isso já ameaçadora.

Seu nome, Pâmela.

Ela foi se aproximando devagar da escada, fingindo que não dera pela presença dos jovens no interior da casinha. E foi subindo a escadinha colorida, degrau por degrau, cantando, com os olhos arregalados - pois ela mal sabia disfarçar a esclerose. A sua cantoria era por si só tão sinistra que Clara, Daniel e Sheila foram tomados de pânico imediatamente após o primeiro lálálá. E a melodia desconexa continuava, cada vez mais próxima, mais perto, mais assustadora. Foi então que a menina surgiu no pavimento, com seus olhos de psicopata infantil, seu vulto refletido contra a luz.

Os 3 amigos, maduros que eram, fingiram ignorar a psychogirl ali infiltrada, para manter suas imagens de pessoas adultas e seguras de si. Para o alívio deles, Pâmela, a esclerosada psicótica, apenas atravessou a casinha e saiu do outro lado, descendo pelo escorrega. Contudo, sem jamais deixar de cantar sua melodia hipnótica.

Tudo parecia resolvido quando ela voltou, atravessou a casinha e desceu mais uma vez pelo escorrega. E assim continuou, ininterruptamente, e a cada descida olhava para trás com seus olhos gélidos, esperando um olhar de um dos amigos para que ela completasse a volta. Assim, o som da sua voz diminuia, para logo em seguida reaparecer mais forte no lado da escadinha colorida.

Quando o terror tomou conta dos amigos e eles perceberam que o ambiente isolado não era muito propício, que se algo lhes acontecesse ninguém viria em socorro deles, decidiram, a contragosto, abandonar a casinha, em busca de ares menos ameaçadores.

Vã ilusão. Algo pior estava para acontecer.

Paula, 6 anos, gorda e agressiva

Logo que desceram da casinha – pelo escorrega, claro -, os amigos avistaram um outro conjunto de balanços, dessa vez a uma altura perfeita para as pernas longilíneas de Daniel. Sairam correndo, entusiasmados com a descoberta, e por isso não atentaram para o fato de que um dos três balanços estava ocupado por uma criatura gorda, morena, de cabelos desgrenhados e barriga saltando pra fora do short de mal gosto. Assim, Clara teve de se contentar em ficar em pé, pois Sheila já se instalara ao lado da gorda, e Daniel no balanço da esquerda.

A primeira ameaça de Paula foi proferida aos berros, enquanto o trio se dirigia ao brinquedo. Ela gritou, ameaçadoramente, com sua voz esganiçada:

- Sai fora!

No entanto, os inocentes amigos julgaram tratar-se de uma brincadeira da menina, e decidiram dar um crédito a ela. Afinal, tão gordinha, tão feinha, coitadinha.

Mas a delinqüente não estava nem aí para a compaixão alheia. Ela só não expulsou Sheila do balanço ao seu lado pois enganou-se com a altura da menina, que era quase a mesma que a sua. Isso, contudo, não impediu que a pérfida Paula começasse a jogar seu balanço contra o de Sheila, na tentativa de acertá-la em cheio com seu imenso peso de gorda feia. E ela nem disfarçava sua implicância: enquanto fazia força para levar o brinquedo para o lado da ingênua Sheila, Paula a encarava com fúria em seus olhos gordos.

Foi assim que Sheila mais uma vez se viu forçada a abandonar o brinquedo, para sua inesgotável tristeza. O que ela não esperava é que Paula tivesse um cúmplice, ainda mais perigoso que a gordura da sua imensa pança.

Manoel, 4 anos, desarmado e perigoso

Manoel surgiu por trás. Fora um chamado de Paula? Teria sido aquele “sai fora” um sinal para a vinda dele? Não se sabe. Mas ele chegou disposto a acabar em definitivo com a alegria dos 3 amigos. E assim o fez.

Seu primeiro ato de maldade foi expulsar Daniel do seu balanço, alegando que aquele era o lugar dele, Manoel, e que ninguém teria o direito de ousar sentar-se no seu brinquedo.

Daniel, tão pacífico, tentou contornar a situação com um “sai daí, criancinha, ou o balanço pode esbarrar em você”.

Manoel, incitado pela tentativa de superioridade de Daniel, resolveu colocar as garras pra fora, e literalmente: puxou a manga da camisa de Daniel até ele ser obrigado a parar de se balançar e abandonar o brinquedo.

Assim, tristes, os três amigos foram lentamente caminhando pela pracinha em busca de um refúgio. Atrás deles, porém, ao invés de Paula e Manoel se satisfazerem no balanço, a gorda horrorosa jogou o balanço vazio, onde antes estava Sheila, contra Manoel, que ainda se ocupava em lançar olhares ameaçadores aos amigos inofensivos.

Foi a gota d´água.

Manoel levantou de seu balanço e foi tirar satisfação (burro que era, pois não percebeu a traição de sua própria companheira):

- Quem foi que deixou o balanço bater em mim???

Assustados, pois não imaginavam serem acusados de ato tão covarde, Daniel, Clara e Sheila ainda tentavam explicar ao menininho que havia sido a própria Paula. Mas desistiram, quando perceberam que não havia saída: Manoel não estava para brincadeiras. Ele juntara as mãos, preparando-se para um soco a qualquer momento, e olhava os 3 jovens com a testa franzida, esfregando os punhos em posição de combate. E assim se manteve, enquanto seguia o trio, que lá se ia fugindo da pracinha, enquanto Paula, talvez arrependida, quem sabe, vinha correndo atrás, gritando:

- Volta! Volta! Manoel, nããããããão!!!!!!!

Aterrorizados pelo tom de Paula, que mesmo sendo delinqüente parecia temerosa por um outro derramamento de sangue por parte de seu cúmplice descontrolado, o Manoel, os amigos resolveram dar um fim em tudo aquilo, abandonando qualquer tentativa de maturidade e jogando no lixo suas imagens de maiores de 21 anos: sairam correndo dali, com lágrimas nos olhos, os corações apertados, em busca de sobrevivência, em algum lugar livre de elementos tão mal encarados como aquelas três sinistras criancinhas. Oh mundo cruel.

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Respondo que não estou interessada em retomar a assinatura.

Ele insiste, pergunta o porquê.

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Ele argumenta que ler jornal é muito importante nos nossos dias de hoje.
- A senhora trabalha em que área, senhora sheila?
- Eu estudo.
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- Faço jornalismo.
- Pois então, você, como futura jornalista, precisa estar antenada com as informações do país e do mundo, e o jornal O Globo pode te oferecer isso e muito mais...
- Ah é, o que mais?
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- Ah, sem graça. No momento eu estava a fim de um iPod.
- Bom, senhora, no momento estamos sorteando um DVD da Maria Rita para assinantes que...
- E eu lá gosto da Maria Rita?
- Temos também a opção do DVD do Milton Nascimento...
- Ai querido, não tem por acaso do Pixies ou dos Mutantes não?
- Não senhora, mas você veja bem... Não é apenas pelos brindes que o jornal O Globo é um grande negócio. Como eu estava dizendo, você, como futura jornalista,...
- Eu não vou ser jornalista não. Estou só fazendo faculdade. Estou gostando muito da carreira de stripper. Pagam muito bem.
- Mas senhora sheila, em qualquer área em que a senhora trabalhar, a senhora vai ver a importância da informação...
- Eu não quero saber o que acontece. Eu gosto de ser alienada. Faz parte do meu estilo.
- A senhora então não gostaria de estar aproveitando esse desconto de 10 por cento na assinatura do jornal?
- Não, querido. Se ainda fosse 90 por cento...
- Desculpe, senhora, mas 90 por cento não está disponível nas nossas ofertas.
- Chato, hein?
- Está certo, a senhora então continue alienada e desinformada, porque amanhã, quando os governantes roubarem o seu dinheiro, a senhora não vai nem ficar sabendo.
- Olha, que ousado você hein?
- Obrigado pela atenção e pela educação.
- De nada. Só que, querido, os governantes já roubam. E não precisa ler jornal nenhum pra saber disso.
(pi...pi...pi...)



2.simpática

- Boa noite, senhora sheila?
- Eu mesma!
- Senhora sheila, meu nome é Fábio, eu estou ligando para lhe oferecer uma oferta especial da Mastercard nesse fim de ano...
- Nossa, que gentil da sua parte!
- Pois é, senhora sheila, os cartões Mastercard agora contam com a vantagem de...
- Mas poxa, Fábio, você trabalha na Mastercard?
- Sim, senhora sheila.
- E você está trabalhando até essa hora? No meu relógio são quase nove horas da noite.
- Sim, senhora sheila.
- Você sofre!
- Quê isso, é um prazer trabalhar para clientes especiais como a senhora...
- Ah muito obrigada...



3.estúpida

- Boa tarde, meu nome é Patrícia, com quem eu falo?
- Hein?
- Boa tarde, meu nome é Patrícia, com quem eu falo?
- Minha filha, você liga pro meu celular e pergunta com quem está falando? Eu é que quero saber!
(pi...pi...pi...)

6.12.05

Última vez?

Você sabe, eu não acordo no meio da noite. Meu sono é ininterrupto, ou inexistente. Quando a gente começa a falar dos nossos conceitos tão nossos de mundo, de relações, de pessoas e inexistências, a minha mente permanece em vigília. Mas quando eu me permito ficar na tua casa, e o silêncio preenche o pouco espaço entre nós dois, há um descanso completo do meu corpo, e eu só acordo com o som da água fervendo, do microondas marcando os segundos, dos teus pés cobrindo os azulejos do chão bem leve.

Ontem foi um pouco diferente.

Aquilo que você previu na minha expressão durante o dia, permaneceu inflamado, e eu dormi, acordei, várias vezes, marcando as horas com flashes estranhos do percurso da madrugada. Estava inquieta. Tinha decidido, mas tentava evitar. Tentava me dizer que não era necessário.

Quando eu levantei pra ver melhor teu rosto, sabia que seria a última vez. Que nos dias seguintes, quando eu te encontrasse, seria a uma distância maior, em todos os sentidos. Que seria a última vez a ouvir aquele som da noite passeando lá fora. (Aquela noite que ronda a tua casa é diferente da minha).

Foi por isso que eu marquei de leve a tua pele - pra lembrar, futuramente, do desenho que ela faz. Pra lembrar da leve ondulação no teu nariz. Das curvas dos ombros. Da temperatura. Da textura.

Levantei, andei até a cozinha, olhei pela janela, e não vi nada lá fora. Inconscientemente, ainda ouvia a tua respiração, prestava atenção no teu ritmo desencontrado do meu. Fiquei olhando também o bolo sobre a mesa, que fizemos durante a tarde, todo despedaçado, a cobertura de chocolate caindo pelos lados. Talvez fosse esse o gosto que eu iria lembrar.

Voltei para o quarto, e adormeci.

E na manhã seguinte, eu pensava que tinha decidido. Que havia sido a última vez. Que eu deveria me forçar a fazer o que era certo, embora o conceito de certo fosse tão difuso e vago. Não se baseava em moralismos, dependências ou regras sociais, apenas nos meus próprios padrões de decisão. Por eu me conhecer tão bem, e prever certas conseqüências.

Mas então eu escrevi isso, e ia deixar para você, só para você, e ia deixar no papel mesmo, que é mais pessoal. Foi só aí que eu repensei, e imaginei uma outra vez, uma permanência, uma continuação. Talvez os meus certos sejam temerosos demais. Talvez o errado seja obedecer à esquiva. Talvez você tenha razão em tudo que me disse dias atrás sobre a minha capacidade de ver certos detalhes como mais complexos do que realmente são. Eu vou ver, e talvez eu descubra novos conceitos, novas regras, daquelas pra te contar durante a madrugada, comendo o bolo que a gente fez durante a tarde, ouvindo aquelas músicas que eu não gosto, mas que são tão você, e que eu vim cantando hoje na volta pra casa, como se a mim pertencessem há muito tempo.

4.12.05

Summer of '68 *

O sol amanhecia lentamente, iluminando aos poucos os dois corpos na cama perto da janela. A garota dormia, profundamente; e a sua expressão fazia crer que todo o mundo estava plenamente estático; nada se movimentava em todo o universo a não ser pelo seu ato de respirar, regularmente, embora não parecesse que uma molécula de ar saísse de seu lugar naquele quarto. Do décimo primeiro andar, tudo lá embaixo tornava-se mais calmo, mais morno, e a cidade, que parecia cotidianamente um caos, aparentava uma calma insuportável. Pois o silêncio que inundava o quarto oprimia a mente de Dario, enquanto ele, deitado mas com a cabeça apoiado em uma das mãos, o cotovelo no colchão, olhava ela dormir, sem nenhum afeto. Ela se chamava Mariana, Luciana, Ana Paula. Qualquer coisa assim. Mas, mesmo tendo nome, ela simbolizava em si todas as outras mulheres que ele encontrara uma noite e com a qual acordara, na manhã seguinte, sentindo que todo o mundo se esvaziara e só sobrara ele.

Podia ver da janela tudo normal, as pessoas saindo para trabalhar, passear, estudar, se divertir. Pouco movimento, pois era sábado. Lá estavam as pessoas, como sempre estiveram, mas se ele descesse e tentasse falar com elas, elas não responderiam nem notariam a presença dele. E os locais da cidade o abrigariam como um intruso. Era como se ele estivesse aparentemente morto, ou todos os outros. Ele caminharia, assim, invisível, fingindo agir normalmente, até que o mundo começasse novamente a se encher de vida, a esquecer o vazio, a inspirar novamente ar. E ele alcançaria a margem, respirando, finalmente, como qualquer mortal, ouvindo os sons e sentindo os corpos alheios quando tropeçasse nas ruas. Tudo voltaria a ser o que era; mas não por enquanto. Por enquanto, a cidade continuava esvaziada, sem som, cheiro ou gosto; sem alma. Talvez ele estivesse sem alma; e, como uma cicatrização, ela voltasse a crescer, aos poucos, até permiti-lo viver novamente em seu corpo. Como acontece com a carcaça de alguns insetos.

Era bonita, mas nada de mais. Mesmo dormindo, podia-se ver o nariz reto, pequeno, os olhos bonitos, embora bastante manchados de maquiagem. Misturavam-se no lençol seus cabelos castanhos claros, espalhados pelo travesseiro, caídos sobre os ombros, a testa, os olhos. Ela tinha uma fisionomia tranqüila, pois estava dormindo. Mas essa tranqüilidade inspirava, em Dario, tristeza. Não um desespero. Era apenas algo triste. Ele perdera a alma, novamente. Deixara de ouvir o tráfego da manhã. Não sentia o movimento do ar nem no pequeno ambiente daquele quarto. Não sentia nem sua saliva nem a ausência dela. E, quando a garota acordasse, ela beijaria um corpo que não poderia sentir nada, nem o calor do rosto dela.

Pensou no que falar. Em como agir para não fazê-la ir embora tão rápido como todas as outras. Não que se afeiçoara dela, mas que esperasse para se despedir até ele sentir-se, novamente, dono de uma alma. Mas não havia o que dizer. Qualquer tentativa seria afetada. Eles se afastariam da mesma maneira que se aproximaram, e voltariam a ser estranhos um para o outro em meio à cidade.

Ela tinha sorte por não ter seu mundo esvaziado naquela manhã. Ficaria ali, deitada, até que, ao acordar, avistaria a cama vazia. Mas para ela era apenas a cama, enquanto para ele era todo o mundo que fora embora antes que ele acordasse. Não era uma troca injusta. E ele nunca fizera isso antes. Sempre tentara manter, no fim, o artificialismo do início. Se as músicas, o escuro, as luzes coloridas e as bebidas haviam permitido aquele encontro, ele sempre tentava despedir-se mantendo-se artificial. Ligaria mais tarde, ele prometia. Sairiam na noite seguinte. Dizia elogios. Fazia-se de satisfeito. E só assim ele poderia fechar aquele episódio com coerência.

Mas, naquela manhã, ele não fechou o episódio, e talvez por isso sua alma demorou algumas horas a mais para se reconstruir.

Ele saiu do prédio como se caminhasse entre fantasmas, uma cidade sem vida. Com todos os sentidos dormentes, não sentiu o Sol forte que cegava seus olhos. Procurou, por perto, algum lugar para comer, pois seu corpo tinha fome. Entrou em uma loja de conveniência, daquelas de posto de gasolina.

Lá, voltou a sentir um pouco do movimento do ambiente e os sons. Teve esperança de que não demoraria como das outras vezes. Tomou, portanto, seu café, um pão de batata, um pedaço de chocolate. Brincava de mergulhar o chocolate no café, distraidamente, quando ouviu no rádio da loja, em volume bem baixo, os acordes iniciais de uma velha canção que ele conhecia, tocados ao piano. Roger Waters começou a cantar. Ele reconheceu a música, e ficou ali, parado, olhando para o café, prestando atenção no que ouvia.

Não era algo que tocava nas rádios, ele nunca ouvira sem ser em casa, em seus discos. Mas naquela manhã, justamente àquele horário, aquela música chegara, por acaso, a ele. Ele, que nem conseguia ouvir nada alguns segundos antes.

Dario não comeu mais nada. Àquela hora, Mariana (?) talvez estivesse acordando e olhando em volta, enquanto ele fitava seu café, a poucos metros dela, mas já tão distante quanto um árabe no Oriente Médio. Ela precisaria aceitar que ele havia ido embora sem nem dizer bom dia; ele, precisaria que o atendente da loja lhe chamasse e perguntasse se ele estava bem para que pudesse levantar, meio perdido, tendo tomado apenas metade do que seu corpo precisava. Mas a fome nada incomodava.

Would you like to say something before you leave?
Perhaps you'd care to state exactly how you feel
We've said goodbye before we said hello
I hardly even like you
I shouldn't care at all
We met just six hours ago,
the music was too loud
from your bed I gained a day
and lost a bloody year
And I would like to know -
how do you feel?
How do you feel?
(…)


_________

*Trecho do meu futuro romance, "Travessa dos Poetas de Calçada", em constante fase de produção. Leiam o texto e ouçam a música, com o balanço do som voltado totalmente para a esquerda. É, pois é, assim mesmo.

3.12.05

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