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25.5.06

Cena 11 – [ Breve diálogo. ]

Marcelo vinha andando acompanhado de um pacote de biscoitos. Estava passando pela sala dos professores, em direção à sala de informática. Passou por ele a professora Kátia, com uma expressão abatida.

-Oi professora.

E ele sorriu. Depois notou que ela nem tinha dado pela presença dele.

- Oi Marcelo. Tudo bom?
- Tudo bom.

Ele ofereceu a ela um pouco de biscoito.

- Obrigada, querido, não quero não.

Ele já ia embora quando ela perguntou se ele sabia do paradeiro de Mariana. Ele não sabia.

- Ah.- respondeu a professora. – Diz a ela pra vir falar comigo quando puder.
- Tudo bem.

E ele seguiu pelo corredor, comendo seus biscoitos. Muito bons aqueles biscoitos. Ligaria para Mariana se ela não tivesse ido ao colégio. Muito bons mesmo. De chocolate. Deviam ser novos. Puxa, estava tão fresquinho ali.

21.5.06

Cena 10 – [ Enquanto isso... ]

Já fazia quase duas horas que Mariana tinha deixado a sala quando a aula de biologia finalmente acabou e deu lugar à professora Kátia, que chegou excitadíssima anunciando um teste surpresa. Os alunos tinham comentado a ausência súbita da menina durante a leitura do professor de óculos de tartaruga, mas agora alguns ficaram curiosos em saber aonde ela tinha ido, e porque gozava de certos privilégios como aquele de deixar a sala sem autorização. Os nerds achavam um absurdo a falta de respeito com o professor dos óculos de tartaruga.

Na verdade, os comentários foram bem discretos, já que Mariana não era a atração principal da sala, mas o fato ganhou importância com o anúncio da prova surpresa, porque Luiza e Bianca tomaram as dores da amiga e começaram a discutir com a professora que não poderia haver prova na ausência de Mariana.

Kátia tentou argumentar com as meninas que a obrigação de Mariana era estar em sala e que, se ela não estava, logicamente ia perder a prova. Era simples, evidente, e era um fato, porque ela não deixaria de fazer o que devia por causa de apenas um aluno. Nisso, as duas meninas se exaltaram ainda mais e começaram a expor argumentos inválidos como se fossem os mais justos do mundo, daquele jeito pedante que as meninas bonitas têm de falar. A discussão avançava com vaias ou palmas do resto da turma, de acordo com o enunciador e o efeito das palavras de cada um. Quando Bianca soltou um “não é justo!” esganiçado, os meninos logo fizeram um “aaaiiiiii” de deboche. Depois foi a vez da professora: quando tentou impor sua autoridade dizendo que eles fariam o que ela determinasse, foi a vez dela de ser vaiada – inclusive por Bianca e Luiza. Mas depois, ao responder às meninas que elas não passavam de garotas mimadas querendo impor a vontade a qualquer custo, a turma toda explodiu em aplausos, ais, uis, interjeições do tipo e ruídos equivalentes, com direito a caras e bocas. Os alunos se empolgavam com o acontecimento, e começaram a surgir apostas de qual lado ganharia. A turma do fundão levantou e elaborou logo a torcida organizada das meninas bonitinhas. Os nerds se ajuntaram à professora e tentavam consolá-la, fazendo-se de superiores e maduros. O resto discutia entre si que o evento estava ou muito divertido ou extremamente insuportável, ah, insuportável.

Depois de uns 10 minutos a discussão perdeu força e a turma cansou da bagunça. A solução arranjada foi que as duas encrenqueiras teriam exatamente cinco minutos e meio para procurar a amiga e, se não a trouxessem no tempo marcado, a prova seria dada na ausência da menina. Enquanto isso, o resto da turma poderia revisar a matéria. Em silêncio, é claro. E se alguém desse “mais um pio” ficaria todo mundo com zero. E ponto final.

*

Um pouco longe dali, Augusto fazia a barba antes de ir trabalhar. A esposa dele, ainda mais feia por estar em desespero, abriu a porta do banheiro e anunciou:
- Ele sumiu.
Como o marido não respondesse e apenas a olhasse esperando o resto, ela repetiu:
- Sumiu.
No segundo seguinte desatou a chorar.

*

Luiza e Bianca seguiram caminhos opostos na escola, exibindo uma cara de autoridade como se aquela fosse uma missão importantíssima definida por algum alto órgão do governo. A situação, portanto, exigia um caminhar pedante e um balançar de cabelos especial. Flopt flopt: direita esquerda, direita esquerda. Quadris bambeantes. Hm, vamos lá.

Digamos então que Luiza se perdeu no caminho, em algum buraco negro de concreto localizado entre o pátio e o portão. Ela que fique por lá. Concentremo-nos em Bianca: parece mais empenhada, está até cronometrando a trajetória (lembremos que elas só têm 5 minutos e meio). Enquanto percorremos juntos os corredores produzidos em sistema fordista, talvez surja na mente dos leitores uma pungente dúvida sobre a real intenção das meninas. Parecem tão preocupadas com Mariana, não? Ou seria aquela necessidade simplista de ter à disposição a amiga mais inteligente para a hora da prova?

Eis que, depois do banheiro, do pátio e da sala dos professores, Bianca entra na biblioteca, esquece o tempo marcado e começa a se ocupar de uma conversa com um aluno da série acima. Ela derrete-se em sorrisos e simpatias. Tudo bem. Nesses segundos que restam para o término do prazo, só gostaria de ressaltar o quão caricata essa menina deveria ser. Ela faz o tipo menina bonita, sem cérebro e má. É esse o arquétipo derivado das historinhas infanto-juvenis e dos filmes pipoca. Teoricamente, portanto, ela está mais para o lado de vilã do que de mocinha, mesmo que não tenha feito nada de malévolo até o momento. Mas se voltarmos às duas opções que temos para encaixar em Bianca com relação às suas intenções, teríamos que inevitavelmente escolher entre: a boa e a ruim.

a) oh, pobre Bianca, tão amiga, tão sempre aí para todo mundo, que bonito, preocupada com o desempenho escolar de Mariana! Até correndo o risco de perder valiosos segundos na própria avaliação!
b) hm.... esssa Bianca não vale nada. Pensa que engana alguém? Que nada. No fundo, só quer saber de não se dar mal no teste-surpresa, afinal, ela não entende nada da matéria.

Eu me recuso. Então é o seguinte: paramos no tempo, congelamos a imagem, a bela Bianca sentadinha na biblioteca. Será ela boa ou má? Decidam uma forma de fugir do clichê. Seria breguíssimo fazê-la parecer mais uma vítima dos preconceitos da sociedade, não? Bom, eu acho.

*

Lá se vai Augusto pelas ruas. Tenta se lembrar dos lugares preferidos do filho, mas não se recorda de nada. Faz um esforço, pensa só no Mc Donald’s, mas Leo não é o tipo de criança viciada em hambúrguer. Visita as casas dos poucos amigos do filho, superando a vergonha de bater na porta de alguém para declarar fraqueza. As mães chegam a se comover, oferecem ajuda, mas Augusto nada pode sugerir como uma forma de contribuição. A porta se fecha, e ele volta a andar e a procurar outra possibilidade. Mas as ruas são vagas, e nada que ele vê assemelha-se a Leonardo. Aliás, ele finalmente se dá conta que não sabe, afinal, o que exatamente se pareceria com o seu filho.

*

Kátia estava sentada na mesa contando os minutos e lendo uma revista, dessa vez sem precisar disfarçar. A turma entretia-se em conversar, comentando os últimos fatos e notícias, enquanto alguns davam uma lida no livro para evitar o pior. A sala estava nesse estado de suspensão quando o relógio da professora marcou o final do prazo. Antes de ela abrir a boca para anunciar o início da prova e começar a distribuir as folhas, a porta se abriu para deixar entrar Luiza, esbaforida e nitidamente furiosa. Todos se viraram para esperar alguma coisa, mas a menina só olhou a professora e foi se sentar, sem falar nada. Ninguém mais entrou depois dela, nem Bianca nem Mariana.

*

No banheiro, Mariana mudava de posição de hora em hora, irritada com o desconforto de sua cabine, e tentando se concentrar no livro. Mas não conseguia passar das orelhas e da mini biografia do autor - “...leia também, de J.D. Salinger, Franny e Zooey, Nove Estórias,...”, dizia a propaganda na penúltima página.

*

Augusto entrou em casa cansado e envergonhado, duas horas depois do intimato de sua mulher. Ela continuava choramingando, e estava no telefone aparentemente sendo consolada e aconselhada por alguém da família. Aparentemente, também, o conteúdo da conversa não era muito enriquecedor, pelas respostas monossilábicas da esposa. Aproveitou a distração dela e foi direto para o quarto. Queria também falar com alguém, mas condenava-se ainda. Com medo de sua própria fraqueza, acabou negando ajuda quando ela poderia ser ainda a tempo.

*

O rebuliço cessara, mas mantinha-se mudo na sala. Kátia já estava irritada, e distribuiu a prova com má vontade. Luiza continuava em sua expressão de desafio, como se isso adiantasse alguma coisa. Os nerds, todos eufóricos, em sua inveja ressentida acreditavam finalmente terem-se vingado da beleza das colegas. Pelo menos uma vez a justiça era feita. Os garotos do fundo da sala pouco se importavam. O resto, ou a massa dos banais, acumulava indiferença. Kátia voltou pra sua mesa e recomeçou a folhear a revista, quase rasgando as páginas ao virá-las. Uma criaturinha levantou a mão.
- Professora, quanto vale esse teste?
Vale porcaria nenhuma. Como você paga esse colégio, as diretoras vão sempre dar um jeito de te passar de ano. Se valesse realmente alguma coisa eu estaria fazendo esses testes até hoje. É só pressão psicológica, entendeu, queridinho? A mente de vocês é fraca como a minha unha. É só eu fazer uma ameaçazinha que vocês se quebram. Escreve qualquer coisa e pára de me encher o saco porque...
- Não sei ainda. Mas vale muito. Muito mesmo. Ô se vale.
Kátia ainda se surpreendia como às vezes a turma inteira não entendia uma ironia.
- Professora...
Um nerd queria perguntar mais alguma coisa ultra essencial.
- Quem já tem 10 na média pode ir embora?
- O quê?!?
- Eu já estou com dez na média. Posso ficar lá fora?
- Pois se você não fizer esse teste vai perder todos esses dez pontinhos, querido.
O nerd não gostou da resposta, mas ficou em silêncio, e até satisfeito, pois já tinha conseguido se exibir. A sala então pareceu mergulhar na tranqüilidade. Um, dois, cinco minutos. Folhas virando, lápis riscando papel, olhares perdidos, costas curvadas. E aí mais um aluno levantou a mão.
- E as meninas que faltaram, professora?
Era uma menina, e nem da ala dos nerds era. Gorda, claro. Kátia, aliás, nunca tinha reparado naquele indivíduo antes. Mas a garota estava com um sorriso embutido, uma sobrancelha arqueada, uma súbita consciência exageradamente importante de si mesma, e mastigava um chiclete (provavelmente contrabandeado) com tanta propriedade que parecia a própria figura do anti-Cristo mirim.
- Qual seu nome, amorzinho?
- Laiana.
- Como é?
- Lai. Ã. Na.
- Luana?
- Laiana!
- Ah sim. Pois então, Laiana, eu não me lembro de ter incluído no teste alguma questão sobre qualquer um dos seus colegas de classe.
- Mas é que...
- E eu também não me lembro de ter permitido mais alguma manifestação sonora depois do início da avaliação.
- Eu só...
- E eu também não me lembro de algum dia na vida ter visto pessoas lindas, sociáveis, auto-confiantes e inteligentes se darem mal na vida ou ficarem deprimidas por causa de um testezinho-surpresa mixuruca igual a esse. Então, florzinha, se você acha que é capaz de lidar com essa hecatombe que seria você acertar menos da metade das questões, pode levantar, ir embora, passar essas duas horas fazendo as unhas na quadra. SÓ VOCÊ, ESTÁ ENTENDIDO? A mais ninguém está concedida essa liberdade. Pode levantar, largar a folha aí, tudo bem? Quem sabe assim você não se sente igual às outras que não estão aqui presentes. Quem sabe. Mas pelo que eu estou vendo, você ainda vai precisar dos meios banais de se dar bem na vida: escola, nota, avaliação, todas essas convenções. Porque esse seu cabelo maltratado, essa sua voz esganiçada, essa sua gordura e esse seu recalque de encalhada cai muito bem em você. Vai lá fora, vai. Aproveita e vê se tem uma pistola automática largada por aí. Costuma ser útil nesses casos.
Perdão, leitores. A resposta proferida por Kátia não foi essa. Segue-se a original:
- Laiana, meu amor. Faz o seguinte: fica lá fora nessas duas horas. Assim você vai ver o que acontece com quem perde o teste.
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20.5.06

Cena 9 – [ Interlúdio ]

No dia seguinte, Mariana tentou incluir-se na regra geral de que todo movimento artístico é uma reação ao anterior. Traduzindo, quer dizer que quando se sente algo de incômodo, busca-se sempre combater esse incômodo pelo seu contraste, ou pela oposição de algo adjacente, em caso de impossibilidade de inversão do incômodo em si. Essa reação em oposição deu-se em bobagens do tipo: em vez de abaixar os olhos ou olhar sempre para a frente enquanto adentrava o colégio, Mariana respondia os olhares fitando cada pessoa da forma mais insistente que conseguia. Como a dizer: “Está olhando o quê? Eu sei muito bem que é você o culpado por todos os problemas da minha vida. Saia da minha frente agora ou eu enfio um sorvete na sua testa.”

Ela subitamente se descobriu com raiva daquele barulho infernal na entrada do clégio, bem às sete horas da manhã. Se descobriu com raiva de tudo e de todos. E nem sabia exatamente por quê. Nem pensou na possibilidade de se dar ao trabalho de descobrir.

Em vez de tomar posse do seu cativo lugar ao lado de Bianca e Luiza, sentou bem na última fileira de cadeiras. Colocou os pés sobre a cadeira da frente, e abriu um livro à sua frente. “O apanhador no campo de centeio”, exibia em letras garrafais a capa cinza. Ela não tinha lido uma única palavra, mas achou de bom grado fingir que lia. Mais um motivo para ninguém importuná-la no momento.

O professor do primeiro tempo ensinava biologia. Com seus óculos de tartaruga, ficava parado lendo o livro e, ocasionalmente, levantava o rosto e fazia comentários adicionais que em nada acrescentavam. Ele lia: “Na inibição enzimática do tipo competitivo, o inibidor, mantido em concentração constante, exerce seu efeito com maior intensidade em concentrações baixas de substrato”. E acrescentava: “Então, pessoal... inibição do tipo com-pe-ti-ti-vo. O inibidor... constante... tem sua ação... não é mesmo?... substrato em baixa quantidade”. Alguns alunos chegavam a empreender um maior esforço de atenção, esperando uma elucidação da leitura, e logo depois fechavam a boca, em desapontamento.

Mariana tentava se concentrar na primeira frase do seu livro, mas só conseguia ouvir:

“...com o aumento da concentração do substrato, devido ao efeito competitivo, a inibição tende a diminuir. Dessa forma, em excesso de substrato, a velocidade máxima de reação é a mesma na ausência ou na presença do inibidor...”.

Ela fechou o livro. Cruzou a sala. Abriu a porta. E saiu dali.

Seguindo pelo corredor, ela entrou no banheiro feminino: vazio. Os azulejos branquinhos deram-lhe boas vindas e disseram “nós te aceitamos, fique à vontade”. Dirigiu-se à última cabine, fugindo do seu reflexo no espelho ao longo da parede. Trancou a porta, abaixou a tampa do vaso sanitário, e acomodou-se calmamente, os pés em uma parede e os ombros encostados na outra. Tinha consigo um telefone celular, um relógio e um livro, não precisava de mais nada, nem de comida. (Muito menos de comida). Fechou os olhos e preparou-se para esperar o tempo passar.

15.5.06

Cena 8 – [apenas uma volta para casa]

Na casa de algum coleguinha? Qualquer pessoa que o conhecesse minimamente – e isso era de se esperar considerando que se tratava de um pai – saberia que não dava pra usar essa frase, relacionada a ele, de forma tão banal.

Mariana se perguntava, e imaginava, e interrogava o mundo geral sobre porquês e comos; em especial sobre os porquês.

A claridade lá fora tinha chegado a um ponto que incomodava; isso além do calor, que dificultava os movimentos. Os dois associados formavam uma piscina a céu aberto de raios solares na qual o caminhar tornava-se pesado.Havia luz demais por todos os lados, como a contornar todo o corpo dela, e volta e meia um raio se espelhava em um objeto, uma janela, um vidro mal posicionado, atingindo-a em cheio nos olhos. Lanças afiadas a perseguirem-na pela rua. O mundo ensolarado, em geral, é visto como convidativo; em dias estranhos, assemelha-se mais a um atestado de incompatibilidade.

Ao longo do trajeto e das esquinas, ela ia apertando o passo, tentando desvencilhar-se da perseguição do Sol, e amaldiçoando a temperatura elevada. Tudo ao redor passava em maior velocidade, borrando, perdendo a nitidez e tornando-se, afinal, insignificante. Mera paisagem padrão a ocupar a visão periférica. O trajeto de volta para casa durava uns vinte e cinco minutos. Ela passou por ruas muito parecidas, umas maiores outras menores. Passou pelos mesmos outdoors, sem reparar se havia outro produto sendo anunciado. Pelos mesmos cruzamentos de sempre. Pelas mesmas pessoas que a rodeavam todos os dias numa multidão anônima a compor os cenários do todo-dia.

É nesse ponto que estacamos. Deixemos a menina continuar sozinha. É aqui que a vemos passar, e seguir ao longo da avenida, sem trilha sonora. E é nesse momento que o contraste da nossa visão se acentua, as luzes a ponto de tornarem-se quase brancas, e a cena toda é engolida pelo brilho.

9.5.06

Cena 7 – [ uma visita; e uma suspeita ]

Estamos agora dentro de uma casa nunca antes visitada. É bem verdade que nenhuma casa serviu de cenário para alguma cena até o momento; mas, fora isso, o leitor talvez indague quem seria esse homem de aparência franzina ocupado em abrir uma lata de salsichas em conserva.

A casa por dentro é desarrumada já à primeira visita; talvez não haja mesmo preocupação em causar uma boa primeira impressão. A própria dona da casa, que esfrega o pano de prato enquanto espera o marido terminar a árdua tarefa de abrir a latinha – coisa em que ele parece não estar sendo muito bem sucedido -, não parece muito vaidosa, com os cabelos desgrenhados e um blusão que pouco favorece a silhueta. Ao redor, móveis de madeira de várias cores, e objetos que não combinam em nada uns com os outros.

Ao som da campainha, o marido aproveita a oportunidade de se ver livre de confessar o fracasso na maldita lata de salsichas, e vai atender, triunfante. Atravessa a sala, com seus sofás cheios de roupas amassadas por cima, e uma TV ligada em volume de mosquito, zunindo pela sala como um som ambiente.

Do lado de fora está uma menina de cabelos dourados, com os olhos apertados por causa da excessiva claridade, e atraindo para si todos os raios solares da atmosfera. Os reflexos sobre ela formam quase uma aura, para os mais adeptos admiradores. Está vestida da forma mais comum possível, o que só faz destacar um corpo adolescente que não precisa de apetrecho nenhum para parecer desejável.

Depois de uns momentos de constrangimento, ela finalmente diz um “oi” meio sem graça, levantado a mão num aceno pouco disposto.

- Oi Mariana – responde o dono da casa -. Quanto tempo.

A frase, apesar de aparentemente amigável, não foi pronunciada com um tom muito simpático. Não exatamente antipático, mas frio. Principalmente porque ele continua parado na porta, sem sorrir nem chamá-la pra entrar.

- Bom, eu... eu queria saber do Leo...não tenho conseguido falar com ele esses dias...

Vale comentar que, não por coincidência, o menininho de cabelos ruivos conhecido como Leo morava ao lado do menino de cabelos cacheados e sorridente da vida chamado Marcelo. Essa observação foi rapidamente citada na primeira cena, mas como estamos já um pouco avançados no texto, é bem provável que o leitor tenha esquecido fato aparentemente tão irrelevante. Eu poderia voltar no tempo e, em um recurso de flashback, mostrar Mariana afeiçoando-se ao vizinho do namorado como a um irmão mais novo; poderia mostrá-los conversando, os 3, na calçada, ou junto do murinho que separa as duas casas. Poderia quem sabe citar alguns trechos de conversa que fizeram Mariana se afeiçoar tanto a ele, e ele tanto a ela, e talvez insinuar, por uma frase ou outra, o quê de dentificação que surgiu entre os dois, por uma simples questão de os dois se sentirem tão desencaixados no mundo.

Assim, às vezes, enquanto um monte de garotos lutava por um minuto da atenção dela, ela passava horas e horas brincando com um simples pirralhinho ruivo de sardas e óculos e carinha de nerd.

Coisas improváveis acontecem.

Mas voltemos. O dono da casa – ok, poderíamos chamá-lo Augusto, por falta de coisa melhor -, antes de responder, ouve sua mulher perguntar de lá de dentro quem tocou a campainha. “Já atendi, querida”, ele responde, e volta-se novamente para Mariana:

- Olha, ele nem está em casa. Deve ter ido pra casa de algum coleguinha. – e ele dá um sorriso amarelo, enquanto Mariana continua séria à sua frente.

A mulher avança pela sala, esgueirando-se atrás da poltrona para ver quem está lá fora. “Oi Mariana!”, ela diz, logo que avista a menina, e abre um sorriso acolhedor.

Mas Augusto continua parado como um goleiro barrando a porta, e, sem dizer nada, acaba levando a menina a despedir-se e ir embora. Quando ela se vira, o sorriso amarelo dele se desfaz de uma vez.

Novamente na cozinha, a lutar com a lata de salsichas, ouve a mulher questionar:

- Não entendi por que você disse que o Leonardo não estava, querido. A menina é amiga dele, o que te deu?

Augusto trava os dentes, tenta parecer natural; ainda sem tirar os olhos da lata, alega que de qualquer forma não ia adiantar dizer que ele estava; que de qualquer forma ele não ia descer daquele maldito quarto; que ele não saía de lá há dias, só saía pra ir ao colégio, e que era melhor deixar ele em paz.

- Pois eu acho que ele iria descer.

Ele não responde.

- Você sabe muito bem que ele gosta dela! Um monte de vezes foi ela que ajudou ele a se animar um pouquinho, você nem se importa se está acontecendo alguma coisa, não é mesmo?
- Ele é só uma criança. Problemas de criança, só isso. Tudo passa. Mais rápido do que você pensa.
- Não gostei nada de você ter mentido pra ela.
- Ele não ia descer, eu te garanto.
- Pois eu acho que ia sim!
- Pois então você atende a porta da próxima vez e pára de me encher o saco com suas opiniões idiotas!

A frase foi proferida em um tom mais alto, e terminou aos berros e com a lata de salsicha se esparramando no chão. Augusto saiu da cozinha, e de casa, e foi tentar esquecer um pouco da própria culpa. No fundo, ele continuava a achar que os outros não entenderiam que ele só estava tentando evitar problemas. Só estava tentando evitar aquelas imagens e aqueles pensamentos que o perseguiam sempre que ela passava algum tempo dentro da casa deles, com toda a sua inocência, a despertar desejos indevidos.

5.5.06

Cena 6 – [ apenas uma passagem de tempo, e o incômodo latente nesses dias ]

Os dias que se seguiram transcorreram aparentemente como todos os outros. Em geral, nesses âmbitos dos pequenos dramas cotidianos, a seqüência temporal tende a ser naturalmente repetitiva. Olhares sutis, frases pequenas e vagas ausências indicam, aqui e ali, um tropeço, um franzir de testa, uma expressão mais carregada. A mesma normalidade que volta e meia esmaga certos espíritos; a mesma constância que em um piscar de olhos surpreende, atônita, instintos homicidas – mesmo que apenas parcialmente rebelados.

O Colégio ... é apenas um ponto imaginário a mais nessa trama extensa de repetições e repetições. Ele e seus alunos. E seu pátio, e seus copinhos de café servidos aos pais-pagantes nas fajutas reuniões de classe. Uma mesma corda soa ininterruptamente os mesmos sons, num sonâmbulo passar dos dias. Dias de marianas, de marcelos, de kátias.

Mariana continuava em seu olhar blasé e sua tentativa de tentar ser o que realmente era. Em algumas aulas, às vezes, pegava-se achando-se inteligente, e logo depois alguma outra coisa desviava sua atenção. Compartilhava os recreios e os ares de superioridade com as mesmas Luiza e Bianca, andando com elas da cantina à sala, do espelho do banheiro ao portão fechado, da sala ao corredor, e novamente, e sempre de volta, para a sala. A porta se fechando atrás delas, e o sinal a arranhar toda a escola em sua explosão histérica, como um corte simultâneo nas peles de todos os ali presentes. Em poa parte do tempo, também, ela juntava sua mão à de Marcelo, e discorria sobre amenidades. Às vezes perguntava sobre Leo. E só não perguntava mais porque teria a resposta inevitável: ele não o tinha visto ultimamente. Mas Mariana continuava a sorrir e a andar, a ajeitar os cabelos e a distribuir flashes de sua beleza pelos corredores. Em todas as aulas ela vigiava o corredor através do vidro da porta. Algumas noites, recorreu à mentira para que a socorresse do telefone, mantendo um silêncio sem culpa. Depois tentou, mais uma vez inutilmente, discar aquele número, numa tentativa vã de não ouvir outra negativa. Imaginava, preocupada, onde estaria o menino dos cabelos ruivos; imaginava o que poderia ter acontecido; entristecia-se pelos pais dele nem imaginarem que ele não estava indo às aulas, e por considerarem a normalidade como presente no tempo presente.

E nisso tudo, nesse conjunto simplesmente desprezível, sóis levantaram-se e abaixaram-se ao redor dos muros de concreto do colégio.

1.5.06

Cena 5 – [um diálogo, uns olhares, dois jovens em busca da metade do caminho]

Marcelo abandonou o jogo e dirigiu-se à quadra, em seu jeito cambaleando de andar. Mariana o recebeu com um meio-sorriso, embora ela se esforçasse por oferecer mais. Deixou-se ser beijada e abraçada, mas o corpo apresentava resistência.

- Que houve? – ele perguntou, finalmente deixando de sorrir.
- Nada – ela respondeu, dando de ombros. E continuava a olhá-lo; depois baixou os olhos, e recostou-se ao ombro dele.

A mão dele, com um pouco de exagero, era quase o dobro da dela. Distraidamente eles brincavam de entrelaçar os dedos e comparar o tamanho das mãos, numa tentativa de compensar o silêncio. Mariana buscava, entre os labirintos do pensamento, algo que pudesse exprimir como algum motivo plausível para a cara amarrada. Ele sempre tão risonho; ela sempre tão cabisbaixa.

- Engraçado. – ela disse, afinal - É bom ficar perto de você. Parece que tudo que eu penso é bobagem, que não tem por que ficar chateada com nada. Quem sabe um dia eu aprenda a encarar as coisas assim igual você. Mas...
- Mas...?
- Não sei. Ao mesmo tempo tenho a sensação de que não tem como você entender o que se passa dentro de mim.
- Não entendo mesmo; me desculpa – ele disse, após uns instantes.
- Ei... Não precisa se desculpar. Não é isso.

Mentalmente, Marcelo fez um certo esforço, como costumava nesses casos, e tentou entender o que se passava, mas o máximo de intensidade que ele conseguia, em questão de análise de situações dramáticas, era algo proporcional ao que se sente quando se imagina “será que ela está gripada?”.

- Acho que você e as meninas brigaram – ele arriscou, por fim.
- Como é? – ela o olhou, surpresa com a suposição.
- Ah sei lá. Você tem falado menos com elas esses dias. Não é não?

Mariana suspirou.

- Acho que sim. Na verdade não imaginei que alguém tivesse percebido. – Marcelo sorriu orgulhoso de sua astúcia, mas a garota nem viu, porque estava de cabeça baixa, admirando o par esquerdo do próprio tênis. – Não foi por querer. Quer dizer, não sei se elas repararam, se estão chateadas comigo. Eu gosto delas, sabe? Gosto mesmo. Não é isso que dizem delas de serem patricinhas e fúteis e burras. Tudo bem, às vezes é, mas não me incomoda, e, poxa...sei lá, elas são minhas amigas... – Mariana fez uma pausa – A gente tem a tendência de acabar sendo o que as pessoas esperam que a gente seja. Todo mundo acha que eu sou muito bonita, e que por isso eu sou metida, e também idiota e um monte de coisa. Às vezes eu me sinto muito desconfortável em não ser exatamente isso; ou pelo menos eu acho que não sou. E aí esperam que eu ande com elas, e eu acabei andando com elas, porque ninguém mais me vê de outra forma, e aí....Ah, deixa pra lá.

Mariana suspirou, e novamente baixou os olhos, em busca do que dizer.

- Pode ser uma grande bobagem, mas eu não queria que me achassem assim tão bonita. Sério. Eu queria ser igual todo mundo.

Marcelo a olhava com carinha de namorado compreensivo, as sobrancelhas levantadas, a boca repuxada pro lado.

- Olha, eu conheci uma menina linda uma vez. Ei, calma aí, não pensa besteira. Deixa eu continuar. Aí, bem, ela era linda, e todo mundo sabia disso. Um dia ela começou a reclamar de chamar tanta atenção, e que todo mundo ficava atrás dela e tal e coisa, e...Bom, na semana seguinte ela sofreu um acidente. E ficou toda deformada.

Mariana olhou-o por alguns segundos. Ele a olhava também, confirmando a história com leves trejeitos faciais. Finalmente, ele disse:

- É sério.

E deu uma gargalhada.