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30.1.06

A não-morte anunciada *

Ah sim, volto para casa, desolado. Amanhece, ainda ouço ruídos de grilos - ou talvez seja impressão. Essa cor estranha de um amanhecer azulado e triste me envolve, vai me seguindo. Estou pálido, não preciso que ninguém me diga. Vejo a inutilidade desse amanhecer tanto quanto dos outros. Vejo a inutilidade do meu caminhar. No entanto, o motorista do bonde passa por mim e acena: eu, parado no meio da rua; e ele desvia, com seu sorriso sarcástico. Parece que os passageiros não viram; mas eram poucos, não posso ter certeza. Na farmácia, o atendente se esconde, se recusa, eu insisto por aqueles comprimidos, mas ele só me vende um líquido verde para limpeza bucal. Estão todos de acordo, e estão contra o meu mais forte desejo. Enconsto-me à porta, vejo ainda outro bonde - talvez ele ria para mim. Aquele homem lá, do outro lado da calçada, bem capaz de ser um bandido, e ele evita os meus olhos. Quisera eu segui-lo, implorar-lhe que me ajude. Mas a minha morte é negada, o amanhecer amanhece, eu sigo os trilhos e não reparo nos carros.

________

* Ouvindo a bela e estranha 'Green Arrow', do Yo La Tengo

( Sem título. Alguém sugere um? )

O menino começou a fazer sozinho aquela casa na árvore, imitando os filmes que ele via quando chegava do colégio, enquanto almoçava em frente à televisão. A mãe dizia que ele devia primeiro comer e depois ir para a sala, mas nunca chegou a surtir efeito a sua sugestão. A mãe não era de dar ordem. Era freudiana e marxista, liberal demais para impor sua posição matriarcal. Então o menino continuava comendo em frente à tv.

O menino gostava de toda essa liberalidade da mãe, só não gostava quando ela recitava trechos de Beauvoir para se consolar das ausências do marido. Ele não gostava de vê-la falando sozinha.

Um dia a mãe viu da cozinha o menino parado no quintal da casa, olhando para cima por um bom tempo. A mãe continuou cantando, e olhando pela janela, lavando a louça, e ficou se perguntando se o menino daria um bom agrônomo.

No dia seguinte o pai aceitou arranjar para ele uns bons pedaços de madeira. Depois arranjou também pregos e tintas e outras coisas. Mas construir, o menino construiu sozinho.

A mãe às vezes olhava da cozinha e achava interessante a casa da árvore, enfeitando o jardim. Às vezes as vizinhas vinham comer bolinhos sentadas no quintal, e ficavam ouvindo a mãe contar como o menino tinha construído sozinho aquela casinha. A mãe chegou a se perguntar se o menino daria um bom engenheiro (carpinteiro não).

***

Um dia a mãe não achou o menino no quarto quando foi acordá-lo para ir à escola, e essa foi a primeira vez que ele dormiu na casa da árvore. A mãe perguntou a ele se não podia entrar chuva lá, se chovesse; se não podia pegar uma ventania, se ventasse muito; se não podia arrebentar alguma coisa e ele cair de lá de cima e morrer. O menino disse que achava que não; que achava que também não; que o máximo que podia acontecer era ele ficar preso nos galhos, mas morrer não morria.

Aí então ele dormia todos os dias na casa da árvore. De noite o menino jantava, pegava suas coisas, dizia boa noite e ia para fora.

Por essa época ele começou a se desfazer das coisas do quarto. Começou com a bandeira do time de futebol, que um dia apareceu na lixeira. Quando a mãe viu, precisou confirmar o fato, e apesar de achar inusitado, não se importou. Não imaginava que depois ele jogaria fora também os discos, o travesseiro, os livros. A cada dia o quarto ia sendo esvaziado, roupas iam sendo amontoadas no cesto para as doações de caridade.

O cômodo foi minguando, ficando apenas com a cama e o armário, que mal se preenchia pela metade.

O menino justificou brevemente: alegou que aquelas coisas já não mais faziam parte dele. Que já não se identificava com aqueles objetos, e que precisava de coisas novas. A mãe entendeu isso como uma forma de materialismo dialético, e chegou a conversar com o pai do menino: ele está crescendo, está adolescendo; fica lá fora tentando chamar nossa atenção para sua independência, sua personalidade, sabe?, precisamos apoiar esse amadurecimento.

O pai não via nenhum amadurecimento no menino, que continuava ignorando a mãe e comendo na sala. Mas mesmo assim colaborou.

Então dia após dia o menino aparecia com sacolas de compras, entulhando sua casa da árvore com abastecimentos para seu novo quarto.

A mãe tinha pensado que ele voltaria a decorar o quarto da casa de tijolos, mas em vez disso ele só se importava com a casa da árvore.

***

Um dia a situação afinal se estabilizou. O menino continuava dormindo na casa da árvore, mas já não jogava coisas foras nem comprava novas. Tinha, enfim, terminado o processo.

A mãe, curiosa, resolveu subir na casa da árvore pela primeira vez, e visitar os aposentos novos do filho. Já o via como um menino diferente, mais seguro de si, e chegou a se perguntar se o menino daria um bom psicanalista.

Ela estava mais uma vez olhando a casa da árvore distraidamente pela janela da cozinha, enquanto descascava oos ovos que tinha acabado de cozinhar. Secou as mãos no avental e pasosu para o quintal. Analisou os degraus de madeira para ver se conseguiria subir. Depois foi com cuidado se segurando até chegar lá em cima.

A mãe ficou satisfeita de ver a organização do menino, pois na casa reinava não uma bagunça, mas uma ordem bem razoável. Algumas coisas estavam meio jogadas, mas nada muito condenável. O estranho era só que a casa da árvore parecia muito com o antigo quarto do menino. Tinha a bandeira do time, igual, só que nova; tinha os mesmos livros, só que em outras edições; tinha as mesmas marcas de roupas, mesmas cores, o mesmo chinelo.

A mãe voltou para a cozinha e terminou de descascar os ovos.

De noite, na janta, ela olhava para o menino um tanto decepcionada, mas não comentou nada com o marido.

28.1.06

|| Paralelos || segunda e última parte

Estava quente, mas não muito, e ele gastou uns bons segundos dando-se ao luxo de pensar sobre o tempo. Ontem estava bem mais quente... – e passou pela farmácia; ...semana passada, que estranho, choveu todos os dias... – cruzou dois prédios; ...quem sabe se amanhã não dá para pegar uma praia?... – parou no sinal; ...vamos ver....se a Elisa topar, vou logo de manhã com ela... – e seguiu o caminho. Só depois de alguns quarteirões ele se deu conta de que seria melhor avisar que não voltaria em casa a tempo. O celular estava descarregado; recorreu ao velho telefone público – havia um alguns metros adiante, podia ver. Quem atendeu foi a irmã: Elisa, avisa aos meus pais que não vai dar pra ir com vocês. Tive que resolver algumas coisas. Tá bom? Do outro lado da linha, um grunhido ou coisa parecida. Ele chamou a irmã duas vezes, temendo não estar ouvindo por causa do barulho do trânsito. Depois de uns instantes, ela disse, numa voz pouco amistosa: Eles vão ficar irados com você. Ele sabia. Mas nem se importou. “Diga a eles isso que te falei. Quando eu chegar, explico melhor.”

*

Era uma praça mais ou menos escondida, pouco freqüentada e enfurnada entre duas pequenas ruas e uma esquina com jeito de depósito de lixo. A praça, em si, não tinha esse aspecto, mas era tão pequena que parecia ter sido criada desajeitadamente pelos próprios moradores. Cada um trouxera um balanço, um escorrega, um pouco de areia para as crianças brincarem... e pronto. Dava para imaginar isso. Devia fazer mais de dez minutos que ela estava ali sentada, sem motivo algum, exceto pelo fato de que não queria estar no próprio casamento. Os gritinhos das poucas crianças ali presentes soavam débeis e em vão. Como ser feliz num lugar daquele tão pouco atraente? Por que se animar com brinquedos com cara de tristes? Ela se perguntava isso, e condenava a si própria, pois se fosse criança teria as respostas mais simples, mais claras e mais fáceis do que as que tinha no momento. Abaixou a cabeça, suspirando, e notou que a barra do seu vestido branco estava sujando de lama na areia suja da praça decadente. A lama de um lugar em que ela não deveria estar, inundando o vestido preparado durante meses, com euforia por parte de todos, menos dela. Um marrom tomando conta do tecido nobre, fino e caro. Teve uma sensação de que estava enjoada, um sufocamento não muito forte na garganta. Passava, sempre passava.

*

“Eles vão ficar irados com você”, ora essa. Que bobagem. Elisa devia saber que a ira dos pais era tão forte quanto a ousadia que incutira nos dois filhos. Que, por mais contrariados que estivessem, nunca tinham força suficiente para causar medo, respeito, ou qualquer outro sentimento necessário a autoridades. Elisa devia saber, mas se ele mesmo não sabia, como exigir isso dela? Talvez ela fosse menos covarde que ele em muitas coisas. Talvez ela não precisasse de coragem, pois dava-se bem em praticamente tudo quanto fazia: era bonita, estudiosa, os amigos, parentes e vizinhos achavam-na um doce de menina. Talvez estivesse reservado a ele o fardo de ter que se esforçar muito mais por cada coisa. Não que se sentisse mal por ser, à primeira vista, inferior a ela. Ela que salvasse o destino da família. Ela que ensinasse a ele novas maneiras de encarar o mundo. Um dia perguntaria a ela, enquanto assistissem televisão, como conseguia ser assim tão... satisfeita. E daria a ela dois dias para pensar em uma resposta. Sim, faria isso. Ele saiu da loja com uma garrafa pequena de Coca-Cola na mão esquerda, e uma lata de cerveja preta na direita. Pagou completando com moedas, apoiou as bebidas no balcão, abriu as duas, e continuou pela rua alternando os dois líquidos escuros.

*

Ela continuava na praça, alheia às amenidades do mundo. Já tinha feito e refeito todas as possibilidades de conseqüências que aquilo lhe daria; como iriam reagir, como ela seria olhada por um bom tempo. Mas as linhas se cruzavam, as situações hipotéticas se confundiam, repetiam, voltavam e se misturavam umas nas outras. Reparou que não estava mais sozinha. A vista periférica localizou a seu lado uma criança. Continuou sem olhá-la, não identificando se era menino ou menina. Mas a insistência do olhar que ela sentia no rosto venceu: virou-se, e deparou-se com uma menina de olhos grandes bem abertos, esperando alguma coisa. “Oi”, começou. E a menina, mais do que prontamente, respondeu um “oi” com voz de quem acabou de comer doce. Ela tentou identificar quantos anos tinha a menina, mas não fazia idéia. Seu pouco interesse por crianças podia levá-la a defiinir 4, 5, 8, 10 anos...não mais que dez, mas isso não ajudava muito. Veio, então, o que ela esperava: “Você vai casar?”. “Não, não vou.”, respondeu. Mas a menina continuou olhando pra ela, sem mudar a expressão, como se não tivesse entendido. “Eu ia...mas não vou mais”. “Por quê?”, rebateu a menina. “Porque...porque eu não quero mais. Ou nunca quis, não sei. Porque pra muitas meninas o casamento pode ser um sonho, mas pra mim não é. Tentei fazer com que fosse... mas...não consegui”. A menina continuava olhando, esperando uma resposta. O “por quê” se exibia entre as duas, brincando de mímica ou outra bobagem, embaçando a visão. A menina nem entendeu que a moça com o vestido de noiva teve realmente impressão de ter respondido a pergunta em voz alta.

*

O lutador da esquerda era moreno, musculoso, com uma faixa na cabeça e tinha três armas especiais. O da direita, parecia uma mistura entre um rosto de cachorro e o corpo de um urso. Não tinha faixa, mas uma faca na mão, e dois poderes especiais. Ele escolheu ser o da esquerda. E perdeu. Era de se esperar, depois de anos sem jogar aquilo. Na época do colégio, às vezes matava aula pra ir jogar no shopping, quase sempre naquele mesmo, que era o mais perto. Não tinha muitas opções, mas dava pra voltar a tempo e fingir que estiveram por lá o tempo todo. Agora ali estava um grupinho de alunos de uma escola ali perto. De uniforme, falando alto sobre alguma coisa sem importância, tomando refrigerante e comprando fichas para os jogos de luta. Quanto tempo havia se passado desde então? E quanto ele achava que seria necessário para não mais se identificar com esse tipo de visão?

*

A menina foi embora, deixando-a sozinha com seu vestido manchado de lama. Poderia tentar levantar dali, mas faltava o motivo. Mesmo que uma praça decadente com várias crianças não fosse lá o ambiente ideal para desfazer a mente da lembrança de um ex-futuro-casamento. Na direção da sua visão mesmo estava uma moça, bem nova, rodeada por três filhos. Daquelas que bem poderiam ter largado o colégio por causa de uma gravidez inconveniente. Daquelas que se comoveram com a notícia do noivado, meses antes. A moça por um instante olhou-a com curiosidade, como era de se esperar. Ela levantou, tropeçou, olhou se vinha carro, e fugiu a passos lentos.

*

Ele comprou outra Coca-Cola, e continuou andando, vendo que começava a anoitecer. Nenhuma vontade de voltar para casa. Nenhuma vontade de fazer coisa alguma. Vontade de estar exatamente ali, anônimo entre o trânsito e as luzes; ou talvez em outro lugar, não anônimo, sob as luzes. Mais um pouco à frente, um ruído, um estrondo. As pessoas olharam todas na mesma direção, algumas voltaram para saber o que era, uma aglomeração se formou. Ele seguiu o fluxo, também curioso, e entre os outros viu um rapaz caído da moto, sendo ajudado a levantar. Mas ele parecia ter quebrado a perna ou algo assim, pois não ficava de pé. Assustou-se: o rapaz da moto parecia um amigo que ele tinha desde muito tempo. Aproximou-se mais, para ter certeza de que não era. Deu uma volta, para verificar o rosto. Realmente não era. Ele saiu do foco da multidão e continuou seu caminho.

*

Ela ficou parada ainda entre os carros, imóvel e assustada, incapaz de responder alguma coisa. Você está bem?, perguntavam. Ela achava que sim, pelo menos fisicamente. A moto passou apenas de raspão. O sinal estava fechado? Estava... mas não respondeu com muita certeza. Um absurdo, um absurdo, poderia ter ferido a moça. A moça de vestido de noiva. Eles se cansariam dela em alguns minutos, e iriam se ocupar do espetáculo do ferido no chão. Estava anoitecendo. Ela poderia ter ido parar no hospital, levando cinco pontos por causa da fuga do casamento. Seria patético. Se fosse um carro, então... talvez até pior. O trânsito parara, e ela ficou um tempo ali, a invejar a confusão, tão nítida, tão objetiva, tão diferente da dela.

*

Ele estava em casa, e o recebeu com surpresa e simpatia. No início achou estranho o fato do acidente, e de o rapaz parecer-se tanto com ele. Depois riu. Ele gostava disso do amigo de conseguir fazê-lo achar tudo mais leve do que poderia ser. Antigamente, na época de colégio, ele se perguntava quando essa mania ia passar, de levar tudo tão a sério, e mesmo assim não conseguir tornar mais sérias suas próprias resoluções. Elas se desfaziam alguns dias depois, senão algumas horas. Agora, via que talvez devesse ter se perguntado se algum dia essa mania ia parar, não quando. Mesmo agora, em que se permitia uma exceção, tentava arrancar simbolismos em todas as esquinas, todas as banalidades que cruzaram seu caminho. Refez mentalmente seu percurso desconexo do dia, e satisfez-se em conseguir rever as horas de uma forma mais simples do que vira no exato momento. Ele ia pensando nisso e ouvindo o amigo comentar sobre seu trabalho, sua namorada, seu carro novo, enfim, fatos que se comentam. Pensou em comentar algo além dessas coisas, mas não viu brecha nem ocasião, e continuou apenas a discussão sobre futebol.

*

Havia algo de hipnótico naqueles televisores, lado a lado, exibindo a mesma imagem, dez, vinte, trinta vezes. A cena da novela se repetia; o personagem se virava aqui, e a sua virada era repetida em todos os outros aparelhos ao mesmo tempo. Mudava-se a cena, e todas as luzes transformavam-se em luzes de outras cores. Estava cansada; principalmente de andar com aquele vestido. Alguma hora teria que voltar; e decidiu fazê-lo naquele momento. Mas aquela hipnose continuava, e continuava... mesmo sem som. Talvez alguém estivesse por perto achando a cena inusitada, mas ela já não se importava. Abandonou as telas à sua frente, respirou fundo, encarou o piso da loja. Depois seguiu entre as prateleiras, que exibiam torradeiras, cafeteiras, fornos elétricos, liquidificadores.

*

De diferença da hora em que ele deveria ter entrado em casa, só o tom do céu, porque as ruas continuavam tão vazias quanto. Sentiu, pela primeira vez, naquele dia, a perna cansada. Não lembrava se andara muito ou pouco; poderia pensar que havia sido muito.

*

Suja, cansada, os cabelos desfeitos, péssima aparência. Principalmente, a expressão abatida, mas que de forma alguma amenizaria as agressões que receberia, mesmo implicitamente. Continuava caminhando no mesmo ritmo, apesar do cansaço. Sentiu, pela primeira vez, arrependimento, pois ainda o amava, e não pôde evitar chorar, enquanto caminhava de volta para casa, os olhos ainda fitando o fim da rua, sem facilitar o caminho das lágrimas. Fizera tudo errado. Tudo, certeza disso. E ali estava o fim, de suas abreviações, de suas tentativas frustradas, de suas insitências mal sucedidas. Não era assim que deveria ser. E por que deveria ser de outra forma? Ela nunca saberia conduzir-se da forma correta. Ainda muitas vezes realizaria um percurso como o daquela noite. Tantas vezes quanto as repetições dos televisores na loja de eletrodomésticos, tanto que se cansaria, e, ainda assim, talvez nunca aprendesse como desejava.

*

Ele entrou despreocupado, achando que não haveria ninguém em casa. Mas estavam todos lá, em suas atividades cotidianas. Parecia que tinham acabado de jantar. A mãe só deu pela presença dele algum tempo depois, e não pareceu furiosa nem nada. Ele jogou as chaves sobre o armário, perguntou o que tinha acontecido. Elisa respondeu, sem tirar os olhos das próprias unhas, que não tinha havido casamento, afinal. E por que não?, ele insistiu. Não tinha noiva. Como assim não tinha noiva? A noiva não apareceu, ora. Por quê?? A mãe não sabia, tampouco o pai, nem Elisa. Ninguém sabia, aliás, pelo que pareceu. Foi bem constrangedor, comentou Elisa. Estranho, disse o pai. E comentaram mais algumas coisas durante a noite, enquanto assistiam ao jornal, e revezavam com outros assuntos.

*

A luz estava acesa, aliás, as luzes de todos os cômodos, dava pra ver pelo lado de fora. Viu algumas silhuetas passarem pela janela; e previu o ambiente pesado, pelo silêncio que se mantinha enquanto ela se aproximava da entrada. Ao contrário do que imaginava, não teve medo algum, e a tristeza passara. Quando se lembrou dele, sentiu novamente aquela sensação ruim, mas passou bem rápido. Sempre passava.

***

27.1.06

I don't need fancy things
I don't watch much TV
And while they fly the kite,
don't feel bad for me

I'm quite happy burning flies

26.1.06

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...nobody does it like they used to, so it may as well be me..."

21.1.06

.

Estou transtornada por tudo que você não compreende.

Naquele dia que a gente sentou um em frente ao outro com um suco de laranja, parecia que você nunca ia saber quem algum dia foi Johnny fucking Cash.

E você falava e falava, sem nada a me dizer.

Sabe, um dia você vai casar e ter filhos, e usar gravata e freqüentar clube de apreciadores de vinho, e trair sua mulher e torrar o cartão de crédito, mesmo ganhando muito dinheiro. E vai escrever um, dois, três livros, e apesar de beber bastante, vai estar com uma puta satisfação por um monte de coisa, e isso me dá uma sensação de fim de filme.

Teve um outro dia que eu quis fazer você sentir isso que eu sinto quando leio umas frases, quando lembro de certas popices... Mas você devia estar bem preocupado remendando as meias e analisando a dívida externa do terceiro mundo.

Cara, ele só pedia que eu não fosse embora, e perguntava se estava tudo bem comigo, e eu nunca achei essa pergunta tão foda. Eu achava tudo nele foda.

Ele quem? Não importa.

Vamos ali até a varanda, ver a vida passar, e contar umas piadinhas, porque é nisso que a gente se entende.

.
.
.

Twenty ways to see the world (oh-ho)
Twenty ways to start a fight (oh-ho)

*

Happiness
is
a
warm
gun

20.1.06

Dear Josephine

Hoje faz duas semanas que não escrevo. E é um bom sinal. Porque faz duas semanas que eu não penso como teria sido melhor negar-me a receber o ar que me foi oferecido anos e anos atrás...

Talvez as pessoas não entendam bem o que quero dizer. Mas os escritores, aqueles bons escritores, aqueles que não se intitulam escritores para tentar convencer os outros de seu ofício secreto, eles talvez saibam da verdade: a necessidade da tristeza para formar frases. Minha alegria soterra minha expressão. Tudo fica fácil e belo demais, e leve demais. E a beleza que eu encontro no mundo é simplesmente boa... não comovente. Talvez algum dia eu ainda tenha que optar entre viver e escrever, como estava profetizado no Encontro Marcado. Mas eu renegaria isso, sim, com toda a facilidade. Não quero me apegar a esse filho deficiente. Não tenho culpa disso que nasceu de mim. Não quero carregar essa doença. Não, não quero precisar escrever. Nunca mais.

Eu falo demais de tristeza, talvez. Às vezes, várias vezes, eu decido que devo passar a fingir completamente, vestir minha máscara e exercitar minha capacidade cênica. I learned to fake it and just smile along. Outras vezes, penso em esquecer tudo isso, e deixar a sinceridade que me é tão característica tomar conta de mim. Ainda não aprendi, das duas opções, qual algum dia fez mais efeito. Talvez nenhuma. E eu lembro que a sinceridade não é isso tudo que um dia imaginei.

Estou ouvindo a mesma música há horas, pensando nas ausências e nas possibilidades. Sim, vago como poderia ser. Ela se chama Josephine, e quem canta é mais um daqueles grupos que as pessoas insistem em classificar de bandas obscuras de pessoas com gostos esquisitos. Não importa. Importa que a voz dela é linda. E que ela é enternecedora. You could be my Josephine...

Ainda vou fazer isso, aquele plano que todo mundo um dia já teve: abandonar tudo, fechar todas as contas, da mercearia, do açougue, fazer uma despedida, e ir morar em alguma parte do interior, com suas casinhas despretensiosas e suas ignorâncias de tudo que eu já vivi. Que foi pouco, muito pouco. E que preencheu mais linhas do que espírito. E que ainda insiste em me locomover, em me fazer acreditar, não sei por que motivos.

Still I look to find a reason to believe.

Esse é um desabafo triste. Se eu fosse cantora e não tivesse medo das multidões, diria: essa é uma canção triste. Talvez melhor em inglês: This is a sad song. Muitas coisas ficam mais bonitas em inglês. Se eu fosse poeta, essa classificação piegas, escreveria mais uma daquelas frases: eu escrevi um poema triste...

And you could be my Josephine and we could be Siamese twins

E, sim, no final disso tudo, eu penso na beleza da tristeza, e na ausência de praticidade em sentir tudo isso, em ser uma beleza não compartilhada, nada como aquele copo de cerveja, aquela mesa para cinco, seis, sete. Não me explico, passo direto, deixo coisas em aberto. Que seja. Quero um cottage, daqueles inalcançáveis, para me dar vãs esperanças. Daqueles em que talvez Josephine vá morar. I'd write some science fiction about you.

Não, melhor assim:

Come away with me, and I will write you a song.

And I'll just go away somewhere and slowly loose my mind

18.1.06

|| Paralelos ||

Ele acordou mais cedo sem querer. Piscou rápido os olhos; duas vezes. Tentou medir as horas pela claridade da janela.

*


Ela não chegou a acordar aquela manhã, pois não dormiu. Passou a noite toda andando pela casa, do jardim à sala, com a televisão ligada em um canal qualquer. Bebeu vários copos d’água, tentando se convencer que estava bem.


*

Levantou calmo, esticando o corpo preguiçosamente. Percorreu o corredor verificando os quartos: todos dormindo ainda. Na cozinha, ficou encarando o fogão, encostado no armário, esperando a respiração estabilizar, e pensando em fazer café. Mas não fez.

*

Ela chegou a deitar por uns momentos, mas levantou, inquieta. Só às sete da manhã chorou um pouco. E quando se olhou no espelho, viu como estavam vermelhos seus olhos. Olhou-os longamente, sem piscar. Depois enfiou a cabeça na água gelada.
*

À tarde, quando voltou do trabalho, teve um pensamento vago que o fez franzir a testa por uma fração de segundo. Chegou a ir para casa, o mesmo caminho de todo dia. Chegou a atravessar a rua. Chegou a apalpar a calça em busca das chaves. Mas passou direto, o passo constante, sem olhar para trás, ainda com as mãos nos bolsos.

*

Ela não tinha decidido ainda, quando o fez. Estava já maquiada, os cabelos num coque, o buquê ao lado. Batia com a ponta do sapato branco no chão descompassadamente, num ritmo nervoso. Tinha decidido pelo sim, mas de repente se viu abrindo a porta dos fundos, evitando que alguém a visse indo embora. Sentiu o suor começar a percorrer o pescoço quando atingiu o fim da rua e seguiu numa direção qualquer.

12.1.06

- Ah, meu filho, mas no meu tempo era beeem diferente... - exclama a velhinha atravessando a rua, a troco de nada e dirigindo-se a ninguém. Só hábito mesmo.

9.1.06

Conto de fadas sem título - parte III

A floresta ficava em uma elevação do terreno. Um rio contornava-a alguns quilômetros, terminando em um estuário mais distante, próximo às falésias e aos rochedos.

Leland e Anne estavam cansados quando lá chegaram. No início do percurso a subida era íngreme e as árvores esparsas, tornando-se cada vez mais densas, até eles não serem mais atingidos pela luz do Sol, senão por alguns raios que conseguiam furar o bloqueio das folhas. Pararam por um momento e olharam em volta: as árvores pareciam todas iguais, e muito próximas. O barulho era mais forte do que eles esperavam; além do vento soprando, havia o movimento dos galhos e os zumbidos de animais que rondavam o local, desde pássaros até ruídos que eles não reconheciam, misturados que estavam. Por alguns segundos, calados, de bocas abertas admirando o cenário, sentiram uma certa frustração – nada havia ali a ser explorado. Aparentemente, pelo menos. Então era verdade que os duendes e os elfos se escondiam; era verdade que teriam que adquirir ainda um contato maior com a floresta para que ela se mostrasse por completo a eles. Em seu íntimo, suplicavam, aos deuses que acreditavam ali existir, que os reconhecessem como amigos, como guardadores de segredos. Que vissem neles o imenso desejo que tinham de conhecer os encantos da floresta. Que os recepcionassem, calorosos, com seus enigmas desabrochados como presentes.

Infelizmente, nada de mais aconteceu na hora seguinte. Ali caminharam, sempre apreensivos, esperançosos de que subitamente algo de novo surgisse. Mas nunca acontecia. E, minuto a minuto, a tristeza tomou conta das crianças.

- Será que a gente escolheu a hora errada? – sugeriu Anne, sentada ao pé de uma árvore ao lado do irmão, enquanto brincava de esmagar frutinhas sobre o laço que envolvia a cintura de seu vestido amarelo.
- Pode ser! Eles podem estar reunidos em alguma comemoração ou coisa assim...
- É...estão ocupados, nem repararam que viemos visitá-los.
- Deve ser...

Ficaram pensativos alguns momentos.

- Mas...
- O quê?
- E então...?
- Não sei, Anne. Talvez possamos voltar aqui outro dia. Podemos dizer à Sra. Smithee que fomos logo cedo à missa...

Anne riu da idéia.

- Como ela irá acreditar?
- Ela acreditará. Você verá.

Anne olhou o irmão, admirada: ele sempre conseguia ser tão convincente! Contava com a sorte de a Sra. Smithee ser bastante inocente para uma mulher da idade dela, mas certamente Leland tinha talento...

- Está sujando todo o vestido, Anne!
Anne tomou um susto. Olhou para sua roupa:
- Mas...você trouxe o outro para eu trocar depois...
- Não era por isso que precisava sujar tanto esse! Não podemos abusar da sorte. Quando forem pegar suas roupas, as lavadeiras podem desconfiar. Elas não são bobas como a Sra. Smithee.

Anne concordou, mas no fundo ficou ressentida com o tom de voz que Leland usara. Os dois estavam tristes pelo fracasso da aventura, ele não precisava descontar nela a frustração. Pensando nisso, acabou não reparando que ainda não tirara as frutinhas de sobre seu vestido. Levantou os olhos para Leland, que a olhava com reprovação.

- Desculpe...

Leland suspirou.

- Tudo bem. Mas preste mais atenção da próxima vez.

Anne levantou. Caminhou em volta da árvore. Ainda pensava que poderia descobrir algo de diferente. Quando encontrasse, Leland ficaria orgulhoso dela. Leland a perdoaria de verdade por ter sido desatenta. Tantos planos e ela cometia um erro banal... Mas, que importava? O problema, de fato, era tudo ter dado errado.

Será que simplesmente não havia mistério?

Anne estremeceu com essa possibilidade. Uma tristeza enorme apossou-se dela. Foi então que ela viu uma luz a alguns metros de distância. Não a luz do dia, mas algo diferente. Parecia formada por inúmeras cores...poderia ser ali a suposta festa dos elfos e duendes. Poderia ter encontrado o esconderijo deles, afinal. Novamente animada, correu até lá, desviando-se dos galhos, arranhando ainda mais o vestido. Mas a luz parecia não se aproximar, não crescia de tamanho, parecia afastar-se de Anne à mesma medida que ela corria. Tentou ser mais rápida. E nisso, tropeçou na raiz de uma árvore, subitamente indo com o rosto de encontro ao chão.

Quando se levantou, a luz sumira. Nem vestígios dela. Nem de qualquer outro sinal mágico.

E, principalmente, nenhum sinal de Leland.

Anne não era uma criança medrosa. Mas ali, sozinha, sem o irmão, não pôde evitar chorar, quando finalmente se deu conta de que estava perdida.

8.1.06

Por uma vida mais ordinária

Querida, a nossa história de amor é mais uma entre as milhares que aconteceram essa semana, esse mês, entre as milhões, bilhões ou talvez trilhões que acontecem todo mês, todo ano. Você pode até argumentar que a maioria não é amor, é conveniência; você é tão sensata que até irrita. Mas é assim que chama, querida. E até o amor verdadeiro é uma conveniência, a mais conveniente, aliás.

O nosso foi um dos mais banais, daqueles que a gente vai ter que inventar histórias pra contar aos outros como a gente se conheceu. Eu sou um cara comum, nem alto nem baixo, nem gordo nem magro, não tenho pinta nem tatuagem nem sarda nem verruga. Você também eu confundiria com outras na rua se já não tivesse decorado todas as sardinhas do teu rosto, a distância entre elas, o diâmetro e o raio das tuas pupilas. Bobagem, não sei nada disso. Nunca fui bom em poesia.

É, não sei se você se importa, mas o nosso amor não venderia livro, não daria música, acho que não dá casamento. O nosso amor é um clichê, mas daqueles que a gente sente falta. Experimente você não ser confundida na rua com mil outras garotas, e você desejaria isso. Você desejaria ser como todo mundo, você sonharia em estar no mesmo evento em que uma multidão também está. Sabe, eu sentia falta do arroz e feijão, quando minha mãe viajava e minha irmã só sabia cozinhar lasanha. Eu sinto falta, até hoje, de ter um jeans básico, porque só uso essas calças marrons do uniforme do trabalho.

Eu queria, antes de conhecer você, a história mais banal, a emoção que todo mundo já sentiu, menos eu. Aquilo que não é nada demais, e é justo por ser só isso. Querida, o nosso amor é um lugar-comum, e dá até pra imaginar que a gente um dia vai se separar por tédio ou ciúme ou traição. E eu vou lembrar de você como a menos formidável mulher que eu já tive, e às vezes, à noite, vou me surpreender olhando lá fora pensando ter reconhecido o cheiro de um perfume que não me lembra ninguém em especial.

7.1.06

Farmácia

No dia em que conheceu seu grande amor, tinha acabado de comprar mais duas cartelas de antidepressivos.

Trocou por anticoncepcionais.

"Stop dreaming of the quiet life...



...'cause it's the one we'll never know"

2.1.06

Quase!

Estou no metrô, em pé, em frente ao banco laranja dos idosos, das gestantes e dos deficientes físicos.

Parênteses: Gestante posso até tentar fingir, mas não sou; idosa, só espiritualmente; deficiente físico... anões se encaixam nessa categoria? Não sei. Então não sento.

Nesse meio tempo um senhor se apossa do assento laranjinha.

Ele tem os cabelos brancos, e uma careca se infiltrando no meio dos cabelos, lutando pra aparecer na foto. Os fios ficam puxados pra trás, mas sem colar na cabeça, meio inflados no ar.

Nervoso. Muito nervoso. Daqueles de garfo arranhando o prato, giz no quadro fazendo som agudo, algum objeto fora do lugar. TOCs de ocasião, alguma coisa que todo mundo deve ter, eu espero.

Vontade imensa de amassar aquele cabelo, fazer voltar para o lugar. Está flutuando demais.

Que os outros diriam se vissem a cena? O que o velho diria? Como me olharia?

É uma curiosidade enorme, tento me forçar, obrigar minha mão à aventura urbana idiota.

Não, eu sou certinha. E autista. Só fico meia hora olhando a careca do velho à minha frente. Quando ele levanta a cabeça, tomo um susto, esbarro na pessoa de trás.

Fim do transe.